Climax (2018)

de João Iria

– Se não pudesses dançar, o que farias?
– Suicidava-me.

As portas encerram para uma festa. É a derradeira celebração para um grupo de dançarinos, exaustos de dançar para ensaios, ansiosos de dançar para festejar. A vida e a morte são comemoradas com uma coreografia criativa e duradoura dentro deste espaço enclausurado; juntamente com o prazer carnal e o espectro de emoções desumanas que este elenco retém dentro dos seus corpos. Adiciona-se uns pingos de LSD à sangria para adoçar esta bebida alcoólica musical e voilà! Um edifício escolar remoto é transformado numa bifröst encarnada que transporta estas personagens – e a audiência – numa viagem alucinogénica do Céu ao Inferno em cerca de 90 minutos. Saúde ao Deus deste mundo, Gaspar Noé, cujo sorriso diabólico se sente na criação desta sua longa-metragem aterradora.

Descrever a visualização desta narrativa, elaborada pelo celebrado e assustador auteur, revela-se um encargo complicado. Seria estranho esperar que o extraordinário cineasta entregasse um filme de domingo à tarde, quando a mente de Noé parece organizar-se mediante o seu próprio calendário único, desconhecido para os restantes mortais. Este é o artista responsável por narrativas visualmente e tematicamente pesadas como Irréversible (2002) e Love (2015). As verdades desconfortáveis, a ligação entre morte e a vida, o cinema como um ato sexual, o cinismo humano, o melodrama psicadélico e a existência sobrenatural são ideias que o realizador emprega regularmente nas suas obras. Apesar de Climax dedicar 30 minutos da sua duração a diversas sequências de dança fenomenais, esta narrativa não é uma excepção na sua carreira. Aliás, na sua coreografia impecável encontramos vislumbres de excecionalidade repleta de detalhes simbólicos e pequenos traços de personalidade que iniciam um rastilho de dinamite.

Uma produção construída através de um argumento com somente 5 páginas, Noé exibe sempre um interesse particular na composição da experiência audiovisual como um olhar voyeurístico a observar interações humanas e a sua explosão climática. Representado na introdução destas personagens, interpretadas maioritariamente por dançarinos profissionais com pouca experiência de acting – sendo Sofia Boutella a única atriz familiar para os espectadores –, numa seleção de entrevistas com respostas abnormais; e nos pequenos intervalos entre os festejos coreografados com conversas agressivamente sexuais e divertidamente absurdas de uma forma doentia. O elenco foi encorajado a improvisar para criar uma sensação de naturalismo desconfortável, que abre os passos para o carrossel frenético e horripilante de uma sangria apimentada e uma banda sonora, simultaneamente belíssima e satânica. Climax bebe o sangue de Jesus como um vampiro sedento por pecado.

O seu longo build-up resulta num único take de 42 minutos sem cortes, pelos quartos deste edifício assombrado por seres humanos em processo de regressão primitiva. Imagine-se os macacos de 2001: A Space Odyssey (1968) a desistirem da harmoniosa dança emblemática de felicidade, equilíbrio e comunidade, para uma possessão de perversão onde o próprio padre abandona o exorcismo para se deitar com os demónios e a própria câmara adere a este deterioramento corpóreo.

Novamente, é complicado descrever Climax pois é uma excelente obra que proporciona uma angustiante aflição especial; uma sensação laboriosa de compreender que coloca a questão: porque raios iria querer ver um filme criado para afastar-me da tela?

Esta mantém-se, ainda, como a experiência fisicamente e mentalmente mais desconfortável que senti no cinema e em casa. Uma que transforma por completo o restante dia/noite de uma pessoa, incapaz de prosseguir na sua rotina diária ou de livrar-se destas imagens compostas por Gaspar Noé. É impossível abandonar o terceiro ato desta longa-metragem, como se este derramasse os seus fluídos para fora do ecrã até instalar-se corporalmente no espectador. A sua crescente atmosfera atinge um longo orgasmo medonho concebido por pesadelos, que enjaula a audiência ao seu ritmo psicadélico demoníaco, entre prazer e sofrimento. Uma contradição hipnotizante. A pior ejaculação cinemática existente. Todavia, a resposta está em Gaspar Noé; a resposta é simples: não deixa de ser um clímax.

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