Citizen Kane (1941)

de Guilherme Teixeira

Desde já, peço imensa desculpa pela audácia que se apoderou de mim para ter o nervo de escrever algo sobre este autêntico clássico. Espero que saibam, caros leitores, que quem vos escreve tem plena consciência de que existe uma grande possibilidade de que as palavras que serão proferidas neste texto muito provavelmente venham a ser alvo de discórdia do próprio autor, tendo em conta a quantidade de tentativas falhadas de compreender esta obra que se foram acumulando ao longo dos últimos tempos.

Este clássico é daqueles casos que sofre devido ao hype que se foi gerando com o passar dos anos. Tornou-se num filme tão elogiado que, grande parte das vezes que alguém lhe dá uma oportunidade, acaba por se decepcionar com uma história aparentemente normal. Em Citizen Kane, Charles Foster Kane é um magnata da imprensa que capta a atenção de um jornalista que, aquando da sua morte, profere a palavra “rosebud”, o que desencadeia uma investigação para descobrir o significado dessa palavra, enquanto percorremos a vida deste mistério de pessoa. 

O foco principal da narrativa, para além da obviedade da busca pelo significado da tal palavra, é desvendar a história de vida de Kane, um homem que enriqueceu a explorar a vida dos outros, desde o momento em que foi tirado da casa dos seus pais até à sua inevitável morte. O filme conta com a assinatura de Orson Welles, um jovem ignorante e ingénuo na altura (palavras do próprio), que também dá vida ao protagonista desta obra. Se fosse praticar o exercício de resumir um filme de forma que pareça estúpida, diria que se trata de uma enorme birra de um ricalhaço ambicioso possuído por um existencialismo macabro. Não obstante, apesar de ser uma forma assertiva de descrever este autêntico clássico, seria um insulto sintetizar esta obra de arte dessa forma. Revolucionário é o termo correto.

Foi aqui, na sua estreia como realizador, que Orson Welles se mostrou um verdadeiro contador de histórias. A narrativa não é linear, estando constantemente a saltar entre o presente e o passado, contudo a sensação que passa é de continuidade, pois desde logo percebe-se que, para saber o significado de “rosebud”, é essencial saber quem foram aqueles que conviveram com Charles Foster Kane para, ultimamente, também o conhecer, até porque para estar interessado na morte de alguém é preciso ter interesse na sua vida, para o bem e para o mal.

Saber a índole de uma personalidade como a do nosso protagonista é, de facto, um desafio. Conhecer Kane passa muito por conhecer quem o rodeava, já que nunca ninguém o conheceu verdadeiramente. É como se, ao longo da sua vida, tivesse dado um pedaço de si a cada pessoa com quem se cruzava e cabe ao público juntar as peças e, mesmo assim, terminar com um puzzle inacabado, no melhor sentido do termo. É incerto se a sua missão de defender os desfavorecidos era realmente do seu interesse ou se o fazia apenas para irritar aqueles que partilhavam do seu privilégio. Provavelmente tratava-se de uma mixórdia dos dois com uma pitada de egocentrismo. Por um lado, Kane parte numa procura desenfreada por poder, mas, por outro, em várias ocasiões, mostra um total desinteresse pela posição que ocupa. No império, na verdade, a única coisa que lhe interessava era que os súbditos o adorassem, mas não queria que ninguém chegasse ao seu nível. Tanto por querer tudo para si, como também, quase como de uma condescendência desmedida, parecia não querer que outras pessoas sentissem a podridão daquele nível de vida.

Um detalhe que chama a atenção é a maneira como Orson Welles trabalha a composição das cenas, principalmente no uso da perspetiva. Não raras são as vezes em que uma personagem parece grande numa cena e depois, através de um movimento de câmara ou apenas pelo andar de uma personagem para um sítio mais longe, vemos o quão pequena é em relação ao que a rodeia. À mente, vem a clássica cena do discurso, quando Kane concorre nas eleições para governador e vemos a sua pessoa em pequeno ao lado de um estandarte enorme da sua face, quase como se o realizador estivesse a mostrar que a sua imagem era, de facto, infinitamente maior do que a sua pessoa.

Para quem for assistir a esta obra de arte, é importante perceber o tempo em que foi feita e ir com as expectativas em baixo. Essencialmente, vão tentar desvendar uma figura através das memórias daqueles que o conheceram, o que pode tornar-se um verdadeiro desafio e é isso que torna o filme tão emocionante de se ver. É a história de um homem que perdeu tudo da mesma forma que ganhou, através da sua arrogância. Uma pessoa que tentou ser grande, mas as coisas boas que lhe aconteceram vieram mais em virtude do acaso do que propriamente mérito, e a sua decadência chegou em virtude da sua vaidade.

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