“Abril para o cinema é a maior revolução que há”
– Raquel Freire.
Como em tantas outras ocasiões, a arte, em particular o cinema, remete-nos à memória conjunta, a acontecimentos passados que não podem ser esquecidos ou minimizados. O 25 de Abril não é exceção.
Meio século se passou desde Abril que encheu Portugal de esperança. Meio século da revolução que nos permitiu exibir A Clockwork Orange (1971) e Ultimo Tango a Parigi (1972), este que ficou em exibição durante seis meses.
Recordar este mês de 74, com os olhos postos no cinema, é não obliterar que também a cultura foi fonte de opressão e censura. É consolidar a liberdade que Abril trouxe, percebendo se a arte continua a ser difundida ou permanece contida.
Falar da Revolução dos Cravos é também entender que o cinema foi, e continua a ser, uma imensa prática revolucionária de expressão cultural e social, com um poder de difusão gigante.
Não olhemos agora para a revolução, após 50 anos, com olhos postos apenas no passado, olhemos sim para a expressão artística digna de ressalvas. Que os novos filmes nos mostrem como é possível olharmos para a sociedade portuguesa atual e não ver os resultados que a revolução nos deu.
Que filmes como Pátria (2023) de Bruno Gascon e O Que Podem as Palavras (2022) de Luísa Marinho e Luísa Sequeira se difundam e que se criem mais 20 filmes que não se acaquem no retrato do que foi viver sob o regime. Mas que se pensem novos filmes. Filmes estes que abordem o que abril nos deu, mas sem as caras de sempre.
Que se veja Salgueiro Maia – O Implicado (2022) e reconheçamos a sua importância para o que que se conquistou. Mas não ignoremos episódios como o assassinato de Alcindo [que de forma tão crua nos trouxe Alcindo (2021)] ou de Bruno Candé. Que se retrate os movimentos fascistas atuais tal como eles são e se difunda que Portugal não pode voltar ao que era
Pela oportunidade que é, por fim, podermos fazer filmes sem medos ou contingências.
Que nos possamos exprimir e criticar, libertar de amarras do passado e gerar revolta nos espetadores por temas que ainda, talvez mais do que nunca, importam.
Abril trouxe-nos a liberdade. Trouxe a expressão que a arte pede, mas que não é garantida, nem podemos dar como adquirida.
A abertura da (e à) arte foi também aceitar em si todas as formas de expressão que até agora foram negligenciadas, seja pela essência do autor ou pela vontade de quem a reproduz.
Elevemos aqui todas as mulheres silenciadas. Todos os atores e atrizes minimizados pela orientação sexual. Todos os membros de equipas que foram esquecidos e segregados pela sua raça, etnia ou religião. Que se eleve quem eleva o país. Que se gritem nomes como Gaya de Medeiros e Ary Zara, que com Um Caroço de Abacate (2023) trouxeram a irreverência e realidade diferentes, tudo o que Abril grita que se crie.
Que hoje, mais do que nunca, lutemos pela liberdade e igualdade na arte, olhando para o passado, relembrando os erros que não podem ser cometidos no futuro.
Portugal não precisa de uma revolução, precisa sim de a reviver sem estar na pele de quem sofreu antes e por ela. Precisa de empatia e conhecimento sobre o diferente sem segregações ou dicotomias antigas.
A Cinemateca Portuguesa faz um trabalho inestimável para não se letargiar Abril. Para ecoar a liberdade e propagar não só as ideias que advieram, mas manter a cultura tão livre quanto vasta. Abril também nos abriu as portas ao mundo e é também no valor da “abertura” que temos de olhar para a arte.
Que os 50 anos de Abril nos tragam tantos ciclos como novos filmes e que a nossa vida coletiva seja pensada com os valores “abrilistas” e dispersa pelo continente e ilhas. Agora que temos a liberdade que tantos suaram e gritaram para conquistar, mantenhamos João César Monteiro em mente: que farei eu com esta espada?
Que rememos todos para o mesmo lado, nunca olvidando que abril construiu o barco onde estamos.