Challengers (2024)

de Pedro Ginja

Uma cicatriz é constantemente destacada no joelho de Tashi Duncan (Zendaya) como lembrança de uma lesão desportiva no início da sua carreira, em plena ascensão na elite do ténis da sua personagem. Mais do que isso serve como metáfora de todas as cicatrizes não visíveis que corroem a sua mente sem se dar conta. De como um evento condiciona e transforma a vida de três pessoas e determina, sem contemplações, um futuro no qual não se reveem. Há uma pressão no mundo actual em que todos devemos estar a fazer o que amamos e nos motiva no dia-a-dia. De lutar por alcançar essa meta, contra tudo e contra todos mas, com a idade adulta, chega a realização de existir um caos inexorável na vida ao qual ninguém está imune. E à qual nós temos, eventualmente, de adaptar para sobreviver.

Challengers de Luca Guadagnino, com argumento de Justin Kuritzkes, centra-se em Tashi, treinadora e mulher de um respeitadíssimo tenista mundial, Art Donaldson (Mike Faist), a atravessar uma profunda crise de confiança. Após uma carreira recheada de títulos existe UM, nunca ganho, que o continua a perseguir como uma maldição que anseia quebrar – Flushing Meadows. Para recuperar a confiança de Art, Tashi inscreve-o num torneio menor no circuito de Challengers onde acabam por encontrar Patrick Zweig (Josh O’Connor), ele próprio em luta para sobreviver no dia-a-dia, mas que partilha uma vida passada de grande intimidade com Tashi e Art. O “choque frontal” do trio é inevitável.

O argumento saltita entre diversos universos temporais e localizações retratando a vida de um profissional do ténis, em constante movimento, e onde se reforça a inabilidade de criar raízes. O seu objectivo principal é, no entanto, criar uma atmosfera de mistério sobre quem são Tashi, Art e Patrick. Quase como uma investigação criminal onde se procuram as razões para o seu presente com vislumbres do seu passado em comum, o que os une e separa. Não existem juízos de valor, inocentes ou culpados entre o trio mas apenas pessoas a reagir ao que a vida lhes reserva criando um relato complexo, envolvente e emocional. O que o distingue de outros argumentos sobre trios amorosos é o facto de nunca dar ao espectador as respostas que quer mas as que não sabe que precisa. Mais do que elucidar, procura envolver o espectador ainda mais, multiplicando as ramificações e implicações sobre cada decisão dos protagonistas, e levando-o, inevitavelmente, a criar as suas próprias “histórias” dentro da trama principal. Quando no final parece que temos o pulso da narrativa nas nossas mãos Justin Kuritzkes troca-nos as voltas e liberta-nos, como às personagens, das tensões reprimidas. Nunca previsivelmente imprevisível foi tão saboroso.

Este é um filme de actores e nesta história temos três muito talentosos a cargo de cada uma das personagens. Tashi Duncan, interpretada por Zendaya, é uma mulher forte mas carregada de contradições – carrega uma raiva latente mesmo a interagir com quem ama – a ilusão da grandeza domina a sua vida e, no seu caso, não depende inteiramente de si, o que a deixa num estado de desespero de perder o controlo do seu destino. Após um papel marcante, mas de segundo plano, em Dune: Part Two (2024) Zendaya segura as rédeas desta personagem, uma sociopata interessada em manter o seu legado e deixar a sua marca no mundo, independentemente do custo. Tudo defeitos que poderiam virar o espectador contra a personagem de Zendaya mas tal é a sua intensidade e determinação que é impossível não nos rendermos ao seu papel. As constantes cenas em câmara lenta das suas reações também ajudam bastante.

O electrizante e sexy triângulo amoroso é completado brilhantemente por Mike Faist (no radar desde o brilhante West Side Story (2021)) e Josh O’Connor, que nunca desilude em nada do que faz. Encarna Patrick Zweig, um poço de talento refém da sua falta de compromisso com a vida e que surge aqui como o elemento tentador de tudo o que o casal Tashi e Art construíram numa carreira longa e cheia de títulos. Josh reveste-o de um charme difícil de resistir mas também de uma tristeza latente de potencial não realizado mas que se recusa a desistir – o clássico bad-boy. Do lado dos “bons” temos o Art Donaldson de Mike Faist, um jogador metódico e disciplinado igualmente refém mas, neste caso, da ambição da mulher. Parece ser o elemento menos trabalhado do argumento mas acaba, com as revelações do passado, por se tornar o mais enigmático emocionalmente. Separados funcionam mas é quando surgem juntos, numa relação fraternal com traços homoeróticos assumidos, que este triângulo amoroso desponta na sua real dimensão. Há uma competição à flor da pele, pois veem-se como um obstáculo a ultrapassar a caminho da glória eterna, e uma tensão magnética que ora os repele ora os atraí dependendo da direção em que eventos da trama os transportam. É esta incerteza sobre que história de amor estamos a acompanhar, e o vigor com que cada um dos vértices deste triângulo amoroso acredita em cada uma das opções, que acaba por selar o interesse em o descobrir por parte do espectador. Tashi-Art? Tashi-Patrick? Art-Patrick? O triângulo amoroso completo? Who knows…

O principal actor secundário, para além do trio principal, acaba por ser o desporto que glorifica: o ténis, aqui mostrado como nunca o vimos na tela do cinema. Desde inesperadas e inspiradas perspectivas de momentos chave do jogo, como o serviço usando espelhos e superfícies transparentes a revelar o intuito de mostrar o jogo sobre prismas nunca vistos. Usa ainda a câmara em pontos de vista sui generis dos seus intervenientes principais como no caso de cada tenista, do árbitro da partida ou “instalados” na icónica bola amarela sempre num constante vai-vem frenético, tão característico do jogo. Fora do jogo em si as opções de direcção de fotografia de Sayombhu Mukdeeprom não são tão distintas mas não deixa nunca de nos prender a atenção. A edição de Marco Costa complementa esse desejo de ampliar a intimidade presente no jogo assim como do trio protagonista com sobreposições de planos que revelam a sua proximidade, mesmo na distância aparente em cena. O mesmo para a intensidade presente em cada um dos jogos de ténis com uma edição de tal maneira intensa e explosiva que nos transporta para dentro do court e nos deixa ofegantes e a transpirar profusamente tal qual os seus protagonistas. Sem surpresas, a banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross é mais um ás na brilhante seleção de talento do mestre-de-cerimónias de Challengers, Luca Guadagnino, de inspiração electrónica, um ritmo incessante e uma sonoridade intricada ao serviço da narrativa e das sensações que impõe.

Com uma energia sexual transbordante o sucesso de Challengers depende muito do seu trio de protagonistas e da sua química electrizante mas é o argumento labiríntico e tenso sobre a obsessão de ser relevante de Justin Kuritzkes e a capacidade de Luca Guadagnino de o transformar numa sumptuosa, sensual e perversa viagem, que nos prende ao ecrã, os grandes vencedores. “Game, set and match”, mais uma vez, Mr. Guadagnino.

4.5/5
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