“People think that I create the horror but I don’t. Horror is already out there. In all of us.”
A corrupção está no olhar nunca na imagem. Quando os video nasties, termo popular associado aos filmes de terror low budget e de exploitation, irromperam pelo Reino Unido através de uma lacuna no sistema de classificações, o chá azedou, criando uma nova entidade culpada por todos os males deste país governado pela wicked witch of the Brits, Margaret Thatcher. O crescimento súbito da criminalidade e de actos de violência receberam uma origem comum com o nome mais britânico de sempre – até consigo ouvir a voz de Austin Powers. Impossível que uma sociedade sujeita ao excesso de desemprego e a um governo negligente e desinteressado na saúde e na beneficência do seu povo iria influenciar uma intensa sensação de revolta alheia. Como sempre, a culpa é do entretenimento portanto só existe uma única solução: censura. “Won’t somebody please think of the children?”
Censor, a primeira longa-metragem de Prano Bailey-Bond, inspirada na sua curta-metragem Nasty (2015), coloca os holofotes numa pequena televisão e neste subgénero de horror, para um character study acerca de trauma, o pânico moral da década de 80, e a conexão entre uma sociedade emocionalmente reprimida com a inerente explosão violenta desta era. Situado em 1985, Enid Baines (Niamh Algar), empregada na BBFC (British Board of Film Classification), combate a controvérsia dos Video Nasties através da censura, banindo filmes ou meramente editando e cortando os seus momentos asquerosos. Para esta protagonista, o seu trabalho implica salvar o mundo, uma crença que carrega consigo num perfeccionismo ridicularizado pelos seus colegas. Inconscientemente, Enid encontra nesta sua posição um método de controlo nulo na sua vida, uma forma de resgatar a sua irmã, desaparecida na sua infância. Através deste mundo audiovisual, descobre uma actriz estranhamente similar à sua desvanecida irmã, derrubando a ilusão das paredes que ergueu em seu redor e presenteando lógica à sua obsessão.
Além da sua elevada distinção técnica, com uma direção de fotografia extraordinária de Annika Summerson, criando uma divisão visual entre escuridão e luz, entre o céu azulado e o inferno encarnado, entre a realidade e ficção – uma dualidade que invade constantemente espaços abertos como privados –, um design de som tenebroso de Tim Harrison que complementa a mecânica cinemática com o sofrimento de personagens femininas na distância e com o silêncio desconfortável do nosso universo apático, e com os cenários de Paulina Rzeszowska que enclausuram a protagonista em corredores, suplicando pela liberdade da insanidade em florestas isoladas, esta estreia de Prano Bailey-Bond confirma um estrondoso futuro na sétima arte para a realizadora, com uma impressionante visão única absorvente e um potente argumento que retrata este mergulho num oceano de película sangrenta como uma segunda morte; o submundo em chamas.
Enid nunca é reduzida somente a uma pessoa com uma percepção conservadora nem os criadores destas cassetes tumultuosas apenas como artistas visionários desrespeitados pela sociedade. O seu comentário social explora conscientemente perspectivas esquecidas nestes cansativos debates, recordando que existe perversão no cinema como um negócio, particularmente nos indivíduos relacionados com estas criações, e existe também uma ligeira racionalidade no medo, aliás é um receio que surge motivado. Censor destaca-se pela sua compreensão da diversidade de realidades textuais desta conversa. Apesar de críticas, completamente erradas, que referem a hipocrisia desta longa-metragem, a cineasta permanece firme nas suas convicções revelando este subgénero como uma experiência catártica para a sua audiência reprimida ou como um escape do seu universo cruel para uma malignidade controlada, e este método de censura como uma restrição manipulativa absurda estabelecida para desviar as flechas dos alvos. Curiosamente, a censura surge nas imagens nunca no sofrimento atrás das câmaras. A preocupação é sobre a influência negativa do entretenimento de terror nas crianças nunca pela sua sanidade mental ou educação. É suposto o Sam Raimi ser o pai desta população? Após os créditos finais, é exigido que Dario Argento apareça no ecrã para uma lição acerca de onde vêm os bebés? Prano Bailey-Bond transmite um mundo que fracassou perante o seu povo, um que encara os seus tramas, tristezas, raivas ou simplesmente felicidade como inconveniências durante o jantar de família. O terror de Censor reside numa mulher que para de existir na sua realidade para conseguir sobreviver às suas complexas emoções, inevitavelmente renascendo na estática cinemática.
“You’d be surprised what the brain can edit out when it can’t handle the truth.”
Niamh Algar, numa performance absolutamente fantástica, captura a essência principal desta citação, colocando a sua protagonista na margem da sua mente, incapaz de reconhecer o apelo que sente por estas imagens obscuras ou de prever o seu passo encaminhado para o negrume pixelizado de uma lente desfocada. Enid está restringida a uma solidão familiar e uma conformidade corrosiva, seguindo o protocolo no seu trabalho como na sua privacidade, que comprime a sua existência. A sua jornada tragicamente fatídica culmina num final brilhantemente devastador, genuinamente um dos melhores terceiros actos no cinema de horror desta década, que consome o espectador na sua película, aprisionando o seu medo numa videocassete.
Uma alma reprimida é uma alma apta para ser manipulada, distorcida e desaparecer na escuridão. Os nossos mecanismos de defesa editam memórias, pensamentos e flashes de vontades e desejos, e censuram a nossa mente pois acreditam ser o melhor para a nossa proteção. É necessário confrontar, presenciar, e existir com estes pesadelos, angústias e traumas para podermos crescer, recuperar e evoluir. Se a arte consegue ajudar-nos a desvendar as nossas identidades, a nossa realidade é suposto ajudar-nos a navegar estas até aos nossos créditos finais. Afinal, o cinema nasce da realidade. Aqui jaz o seu verdadeiro terror.