“And you can tell everybody
This is your song”
Your Song – Elton John
Ao anoitecer, enquanto a multidão dispersa e os últimos sobreviventes aproveitam para capturar as suas restantes recordações em câmara, que brevemente serão perdidas na galeria dos seus iphones, as pernas enfraquecem e a mente desgasta, pelos degraus do Altice Arena, como um corpo estático semelhante a uma estátua humana a quem casais e famílias beneficiam da oportunidade para pedir fotografias, em frente a um insuflável. A edição da Comic Con Portugal 2021 está prestes a cerrar as suas portas, contudo, a sensação é que esta atingiu o seu desfecho, durante a sua madrugada.
O entusiasmo de Sábado, entre o público, sobressaiu como uma lembrança da vertente apaixonante que reside na população geek, uma que alcança ingenuidade sedutora e, simultaneamente, uma obsessão apavorante, sem limites. Domingo na CCPT21 é um caso para reflexo interior, com momentos para atormentar as nossas versões futuras, em noites sem dormir, como memórias plastificadas em almofadas. O ambiente aperta com uma audiência especificamente escolhida para oferecer, cinicamente, o mínimo possível, sem qualquer retorno emocional genuíno. Os rugidos, de fãs ansiosas, estendem-se pela arena inteira, como um concerto Heavy Metal de uma banda composta por milhares de jovens pubescentes. Eu sou a personificação de cansaço.
Neste último dia, existiu tempo para refletir sobre um evento exaustivo. Após tardes inconsistentes, em termos de organização, informação, programa e identidade, uma esperança em reunir com o espírito da manhã anterior é substituída por frustração, durante uma longa espera, superior a duas horas, para um teste rápido antigénio, de forma a poder ter acesso ao recinto. Adiciona-se cerca de uma hora, com o tempo a aguardar pelos resultados e 30% desta última experiência foi dedicada a uma fila. O suficiente para esgotar a bateria do meu smartphone, precisamente nos segundos finais da canção “Your Song” de Elton John. Uma música que permaneceu, nesta CCPT21.
O Golden Theatre estava, pela primeira vez, praticamente cheio com uma audiência, extasiada pela presença do jovem ator de Stranger Things (2016-), Noah Schnapp, que, durante o seu painel, manteve informação acerca da quarta temporada, em segredo e respondeu a várias questões genéricas com as respostas habituais, que soavam pré-programadas, atingindo um ponto em que podia escrever um artigo sobre esta conversa, sem ter comparecido. Além desses instantes superficiais, o ator encantou os espetadores ao cantar os parabéns a um membro da plateia; ofereceu alguns presentes aos indivíduos com o melhor Cosplay da série e terminou a sua hora com selfies, num público que aparentava alinhado para consumir o jovem, como uma espécie de Demorgorgon humano. Um cenário que será conservado, apertadamente, nos próximos dias desta comunidade mas que estranha por ser um evento que simbolizava revelações, notícias, trailers e excertos exclusivos, na cultura pop, e que, atualmente em Portugal, demonstra-se como uma espécie de Comic Con marca branca, onde somente a presença de celebridades é suficiente. Este comentário não intende criticar Noah Schnapp, um ator de qualidade, que durante o seu tempo foi simpático e inofensivo perante os seus ouvintes; serve como um enigma confuso acerca do principal painel deste evento, ser apresentado sem destaques, com uma temporada próxima de estrear, e uma seleção de questões aborrecidas. A culpa não reside na audiência pois são jovens fãs, claramente entusiasmadas por assistirem um artista por quem sentem profunda paixão; pertence a uma organização que não demonstrou interesse em atribuir espaço à imprensa portuguesa de criar uma conversa genuína; a maioria da press, em pé, sem lugares marcados, distanciados, a observar este teatro de showmanship de um evento que aparenta estar a colecionar o elenco de Stranger Things como Pokémons. O mínimo possível, com suficiente para compensar financeiramente.
De seguida, Manu Bennett iniciava o seu painel, no mesmo espaço, maioritariamente vazio. O ator partilhou as suas experiências nas filmagens de séries como Arrow (2012-2020) e Spartacus (2011), juntamente com as diferenças de filmagens no seu país da Nova Zelândia e em Hollywood. A sua voz aquece o Golden Theatre com uma impenetrabilidade que contrasta com o charme acessível da sua personalidade. A audiência diminuiu, contudo, o interesse aumentou em presenciar esta conversa.
Um passeio final pela Artists’ Alley, para descobrir artistas perdidos, entre o caos deste dia berrante, antes dos Capitão Fausto apresentarem o seu novo projeto: um filme concerto intitulado Este Espectáculo Vai Ser Filmado – Capitão Fausto & Orquestra das Beiras, uma experiência capturada durante a pandemia, referenciada como “Um sonho filmado em formato digital”. Quando a banda notou a incapacidade de produzir esta obra, com poucas câmaras, decidiu incluir as filmagens captadas dos espetadores, no Campo Pequeno, na própria criação visual da longa-metragem. Os excertos exibidos revelaram um conceito fascinante que adota as diversas perspectivas de um espetáculo musical, combinando a estabilidade criativa com o fulgor singular do espetador. Apesar de não existir data confirmada de estreia, a expetativa é distribuição em 2022.
A noite ocupa o último painel desta Comic Con e o cansaço espalha-se pelas escadas do Altice Arena. A desorganização persiste numa convenção que ocorreu sem informação partilhada com a imprensa portuguesa, uma intensa ausência de comunicação e constantes alterações no seu programa. É crucial apontar que no primeiro dia, abriram as portas à press com a apresentação do espaço, infelizmente, devido à notificação súbita da proibição de entrada a quem não dispunha de testes negativos, a oportunidade de comparecer nesta foi impossível, com a descoberta, em pleno feriado. Uma adversidade que o evento procurou compensar sem consideração da sua própria dimensão.
Certas decisões bizarras destacam-se, como colocar convidados dentro de uma jaula de vidro, semelhante a um jardim zoológico que retira aderência e intimidade nas suas discussões ou os diversos painéis que sofrem devido à privação de atenção providenciada pela organização. Somente no último dia é que foram avistados cartazes a publicitar o seu programa; durante as primeiras tardes, testemunhavam-se grupos confusos com as apresentações de cada recinto; alguns praticamente vazios enquanto os convidados esforçavam-se para manter o interesse da diminuta audiência. Possivelmente relacionado com a exigência das restrições da DGS ou o número limitado de entradas permitidas, no entanto, a presença de Noah Schnapp revelou que este não era o seu contratempo principal. Existem eventos que funcionam com um público escasso e outros que exigem espetadores, e num programa intrigante, como este, seria naturalmente pressuposto que os seus convidados não assemelhassem a peões nas atividades.
O objetivo prevalente nesta jornada pelo Altice Arena, está em analisar os espetáculos e sessões através da visão de um visitante que pagou a sua experiência e da perspetiva de imprensa, que procura verificar o programa absoluto e as suas apresentações com rigorosidade integral, avaliando a sua qualidade e validade. Procuro não demandar excessivamente e contento-me com o recebido e as suas condições, em múltiplas circunstâncias, consciente das inúmeras atribulações de conceber um evento, humilde ou colossal. Admito que, em várias ocasiões, evidenciou-se uma convenção divertida, com painéis e atividades interessantes fornecidas, identificadas nos artigos anteriores, e, pessoalmente, não existe arrependimento em integrar esta CCPT21, ainda assim, é impensável a desordem e supressão de comunicação que surgiu durante o progresso desta, e estaria a ignorar o propósito e função desta viagem se ocultasse os seus lapsos.
A manhã de Quinta-Feira, abriu as portas para um público que, antigamente, era considerado pária da sociedade; os amantes de cinema que encaram a tela como uma janela para o mundo, os indivíduos transportados pela intensidade emotiva de anime, aqueles que voavam nas palavras apaixonantes dos super heróis, dentro das páginas coloridas, os que recusavam a ouvir os pais e mantinham-se colados ao ecrã da televisão, hipnotizados, e os jovens que iniciavam um universo, somente com o botão Start. Seria errado entrar com presunção de exigências que criam comunidades tóxicas mas a Comic Con é criada para os fãs, desde a sua origem como estratégia para interagir e conhecer outros amantes de comic books, até a sua inevitável expansão em marketing para estúdios bilionários. Neste contexto é primordial sentir conforto nesta como um espaço seguro para as peculiaridades dos admiradores e sentir como uma relação simbiótica, ainda que num mundo capitalista em que a alma geek está, constantemente, à venda. Por isso, como qualquer membro apaixonado desta comunidade, desejamos experienciar uma sensação que mantenha essa ligação de regresso, como um novo capítulo desta narrativa ou uma espécie de “to be continued…”
Durante o longo período de tempo vazio, refletiu-se no estado presente da cultura pop, e da sua relação vinculada com os artistas responsáveis pela sua construção. Recordei a canção “Your Song” de Elton John e um passado de visitas a convenções como Anipop ou Iberanime, ainda presos a modestos espaços, com uma comunidade estranha, eufórica, ligeiramente cringe, orgulhosa e entusiasmada. Eventos que ofereciam pouco em comparação com esta Comic Con, e concluíam como celebrações fatigantes, devido à sua área restringida. O que permaneceu foi a paixão imbuída na sua criatividade, com entretenimento único que oferecia um excelso programa, fora do seu orçamento, e mesmo que essa paixão surgisse da mentira, era presenciada na sua audiência humorada, compensando a desorganização amadora da sua construção. Porque esta era a nossa canção, uma criada para o seu público.
“While I wrote this song
It’s for people like you that keep it turned on”
Your Song – Elton John
O público mantém estes festivais geek vivos. Apoiamos financeiramente os artistas que nos apoiam emocionalmente, sejam comic books, música, cinema, arte, posters ou merchandising, porque a audiência possui o poder do rádio ligado, a canção com a orquestra, a caneta com tinta e a imagem com vida. Estar consciente da batalha entre a pandemia e as artes é o motivo principal de escrever este artigo com profundo impasse pois desejo proteger os recintos que fornecem espaço para artistas, e que preservam a cultura; por isso, angustia-me afirmar esta conclusão dececionante para a CCPT21.
Essa audiência desconhece a responsabilidade volumosa que desfruta perante o mundo que tanto venera e depende, e enquanto escolhe concentrar-se em discussões fúteis acerca do seu valor e espalhar bullying online devido a decisões de casting, a representação positiva de fandom está num momento tão pequeno quanto a nossa presença e na vontade de manter a música a tocar. Aguardo, sinceramente, uma futura Comic Con que compreenda a validade dessa vontade, a sua identidade e a audiência que pretende atingir, com um evento organizado e dedicado em destacar os seus convidados, atraindo atenção para o seu programa, respeitando a imprensa e o seu público, e dispostos a oferecer mais que teatralidade presencial, porque este dia final revelou-se meramente como som para preencher o tempo, uma canção vazia.