Carnival of Souls (1962)

de Francisca Tinoco

Por muito que se teorize, imagine, ou conjeture sobre o que acontece depois da morte, continua a ser um dos maiores mistérios a assombrar e, muitas vezes, a guiar a vida humana. Consequentemente, e como qualquer outra questão que ainda obscureça os artistas, é também um tópico de tremenda fertilidade para o cinema. As opções e oportunidades são infinitas, e não há médium mais apto para explorá-las que este.

Carnival of Souls, o filme de 1962 de Herk Harvey, não foi o primeiro nem muito menos o último filme a debruçar-se sobre o lugar e o destino das almas, mas foi certamente um dos mais influentes filmes surrealistas e psicológicos da sua época. Um filme de terror independente, feito com um orçamento mínimo, que se transformou num filme de culto e um marco para os fãs do género.

O enredo começa com um acidente de carro do qual só há uma sobrevivente, Mary Henry, interpretada por Candace Hilligoss, a única atriz profissional do filme. Mary é organista de profissão e recebe uma oferta de emprego de uma igreja em Salt Lake City, mas a sua nova vida é importunada por aparições de um homem morto-vivo, interpretado pelo realizador, e experiências angustiantes em que parece perder contacto com o mundo à sua volta. Aos poucos Mary torna-se cada vez mais instável, aterrorizada e desesperada face a estes acontecimentos, que se tornam cada vez mais recorrentes.

Com o pouco orçamento e tecnologia à sua disposição, Harvey consegue conceber em Carnival of Souls uma imersiva representação da psique da sua protagonista, exteriorizando-a através de efeitos visuais, planos expressivos e inesperados, e uma montagem de imagem e som quase sempre precisa e eficaz na construção de um suspense carregado, mas nunca exagerado.

Ainda que raras, a existência de cenas que não dependem do ponto de vista de Mary impede-nos de categorizar este filme como sendo inteiramente subjetivo. No entanto, apenas nós, os espectadores, e a protagonista, sabemos realmente aquilo por que ela está a passar. Enquanto todo o elenco secundário estranha as suas reações, rejeitando-a e aconselhando-lhe ajuda médica, nós compreendemos e simpatizamos com a sua angústia, desvendando todas as respostas ao mesmo tempo que ela.

O magnetismo de Hilligoss, muitos graças aos seus olhos esbugalhados que prendem qualquer um ao ecrã, assim como a personalidade irreverente e independente de Mary, ajudam a este processo de ligação, investindo quem vê na resolução dos conflitos para que tanto nós como a protagonista possamos ficar satisfeitos.

Para este investimento é também fulcral o ritmo cuidadosamente manipulado por Harvey, organizado quase como os vários andamentos das peças que Mary toca durante a missa. O declínio da sua sanidade e paz mental é gradual e paralelo a discursos sobre religião, a pureza, e o poder que a nossa mente tem de nos “pregar partidas.” As aparições nunca são abusadas enquanto elemento de choque ou susto, sendo o seu uso calibrado para surgir em momentos-chave. Não fosse a maquilhagem exagerada, própria dos tempos e do cinema a preto e branco, ficaríamos totalmente convencidos de que era realmente uma pessoa morta que Mary via por toda a parte.

Carnival of Souls é muito mais que um filme de terror, utilizando o paranormal para se debruçar sobre questões filosóficas da materialidade da vida, e tendo, em Mary, uma protagonista fascinante que se recusa a vergar-se aos moldes que a sociedade lhe reserva. Não se sente na necessidade de se proteger detrás de um homem, mesmo quando tem sempre um a oferecer-lhe a sua companhia, e não se deixa subjugar pelas figuras de autoridade que a julgam. É autodeterminada, mas não vive em função do seu trabalho. No entanto, é também uma pessoa completamente isolada, sem vínculos emotivos com ninguém, não havendo menção da sua família ou amigos. Esta é uma escolha consciente com importantes implicações para o verdadeiro significado do filme, que apenas nos é revelado no seu final.

Um filme cujo conteúdo é tão interessante como as condições da sua existência, que poderá passar despercebido perto de outros marcos do terror da sua época, não sendo, no entanto, motivo para ser desprezado. Carnival of Souls é uma viagem desconcertante pelo mundo dos espíritos, da imaginação, e de tudo o que há pelo meio.

4/5
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