Caos do Sodré (2022)

de Rafael Félix

Se as paredes guardassem memórias, certamente os muros que delimitam as ruas do Cais do Sodré seriam aqueles com as recordações mais difusas e incoerentes, não fossem estas generosamente banhadas em álcool, folia, melancolia e outras substâncias menos nocivas. São esses fragmentos de noites lisboetas que Carolina Torres tenta restaurar em Caos do Sodré, um documentário feito, como a própria admite, “com 0 rigor histórico e um budget de projeto-escola”, mas, como que por ironia do destino ou golpe de génio, é exatamente isso que enche este trabalho com um charme difícil de resistir.

Narrado por aqueles que viveram o Cais no seu melhor e no seu pior, Caos do Sodré faz jus à expressão que Gisela João usa para descrever este ponto de encontro de marinheiros e má vida: “é o espaço mais democrático de Lisboa”. Ouvimos as histórias do Jamaica, do Tóquio e do Texas Bar pelas vozes plenas de saudade do Sr. António e do Sr. Augusto, prata da casa que é o Cais do Sodré, que recordam os dias em que estes bares míticos do Cais eram marcados pela prostituição, pela ida e vinda de marinheiros de toda a parte e pela música que unia toda esta microssociedade num todo tão heterogéneo e diverso como generoso para com os seus mais variados membros honorários.

Estes tais cidadãos do Cais são também chamados ao púlpito para partilhar as suas peripécias junto às margens do Tejo. Personalidades que vão desde Paulo Furtado e Gel, até João Botelho e Mariana Norton, contam histórias de noites de insensatez e aleatoriedade tal que tornam plausíveis até relatos que envolvem uma senhora da noite chamada Maria a passar madrugadas tórridas com o assassino foragido de Martin Luther King. Numa das derradeiras intervenções do filme, há uma alma que diz que “se me disserem que viram um elefante a voar no Cais, eu acredito”, e o maior mérito de Caos do Sodré é fazer-nos também acreditar que se haverá sítio onde veremos o maior mamífero terrestre do mundo a passear-se pelos céus impulsionado pelas mais belas asas brancas, será por cima do Cais do Sodré, sobrevoando a população deste pequeno, mas maravilhoso vilarejo.

Todo este romantismo do Cais como um lugar de encontro das almas perdidas de Lisboa, um porto (não muito) seguro de braços abertos para receber todos aqueles que dele precisassem dele, torna difícil a tarefa de ignorar o tom algo funerário que paira sobre estes contos ensopados em cerveja e suor. Porque a verdade é que Caos do Sodré, talvez de forma inusitada, sente-se tanto como uma celebração de um espaço onde se criaram histórias extraordinárias como também se sente como um exercício de nostalgia disfarçado de carta de despedida a um amante que se transformou em algo irreconhecível perante os nossos olhos. A higienização e “turistificação” do Cais, à semelhança daquilo que aconteceu noutros espaços da capital, insurge-se com um adversário aparentemente intransponível e que irá, a seu tempo, engolir este espírito quase libertino do Cais, convertendo a loucura do Liverpool ou do Copenhaga em meros alojamentos locais e hotéis destinados a todos menos às gentes que fazem do Cais aquilo que em tempos foi: criativo, generoso e aberto a todos.

Faria bem a Caos do Sodré deixar-nos passear um pouco pelas ruas da sua personagem titular, fazer-nos sentir o cheiro nem sempre agradável da vida noturna lisboeta e dar-nos a conhecer cada dos lugares mencionados pelas pessoas que neles se perderam e encontraram noites e noites a fio. No entanto, Carolina Torres dá-nos outra coisa em vez da arquitetura destes espaços místicos. Dá-nos o espírito do Cais pela voz de quem fazia, e ainda faz, dele um dos lugares mais encantadores e peculiares da capital. E se Caos do Sodré acabar por ser o obituário daquilo que um dia foi este pedaço de terra à beira-rio, é um que, apesar do sabor agridoce com que nos deixa, deverá fazer sorrir qualquer pessoa que algum dia tenha passado os pés pela calçada boémia do Cais do Sodré.

3.5/5
0 comentário
2

Related News

Deixa Um Comentário