UMA NOVA VIDA ÀS VELHAS PROBLEMÁTICAS
Ao passear por alguns dos textos escritos pela imprensa portuguesa sobre Candyman, o reboot/sequela do clássico do mesmo nome de 1992 realizado por Bernard Rose e baseado na obra de Clive Barker, consigo ganhar alguma simpatia por aquela faixa de população que o diz que os críticos perderam o comboio da evolução, não só do meio, mas da sociedade em si.
Talvez “não perceber nada disto” não seja a expressão mais correta para definir o conteúdo que tenho lido, mas é mais um bafiento cheiro a naftalina e tremenda falta de empatia, não só para com o objetivo deste novo tento de Nia da Costa como também para com a experiência afro-americana (e não só) numa sociedade onde o racismo é lei vigente. Essas opiniões só reforçam a importância daquilo que a realizadora aqui entregou, o que não deixa de ser irónico.
Candyman é ambicioso, corajoso e traz para os dias de hoje muito do espírito do filme original, mas com nuances novas que como que dão uma luz e uma atitude diferente do filme de 92’.
A história passa-se nos dias de hoje, novamente em Cabrini-Green e segue Anthony McCoy, um artista, protagonizado por um brilhante Yahya Abdul-Mateen II, que procura inspiração no mito urbano do “Candyman”, uma entidade com um gancho no lugar do braço que causou um pânico sangrento décadas antes em Cabrini-Green e que, reza a lenda, pode ser convocada se disserem 5 vezes o seu nome em frente do espelho. Anthony, como ditam as regras do género, faz isso mesmo.
A produção de Jordan Peele, assim como o crédito como co-argumentista vem com várias vantagens: a distribuição está assegurada, existe diversidade à frente e atrás da câmara, há algum Buzz mediático nem que seja pelo seu nome estar no poster e a mais importante, a garantia de rabos sentados nas cadeiras para uma sequela de um filme que, embora de culto, não tem o apelo mainstream que iria ajudar por si só a exigir o público a estar atento.
E fica claro que Candyman exige atenção. Porque ainda que com alguns tropeções narrativos que se tornam cada vez mais problemáticos quando o filme começa a entrar na sua etapa final, é um trabalho que traz uma abordagem diferente aos temas centrais do filme original e isso era possivelmente a tarefa mais difícil que o filme de Nia da Costa tinha pela frente e superou esta com mestria.
Desta vez o filme distancia-se do POV do fish out of water que era Helen Lyle e foca-se muito mais na experiência afro-americana e não como esta é visitada pela classe média-alta que vem estudar os subúrbios. Não é que o filme de Bernard Rose não esteja também ele carregado de estudo de carácter social e subtexto, mas este novo rumo está também ele ligado à própria tese do filme e macabro otimismo que tem para com a sua narrativa.
Porque em vez deste filme ser (apenas) sobre exclusão social e memória coletiva, é muito mais um filme sobre a perda da identidade cultural, não só a nível pessoal como a nível artístico, que foi uma adição interessante à narrativa e que oferece mais uma camada de comentário principalmente ao meio crítico e relação com o meio criativo (que devia ser levada bastante mais a sério por alguma terrivelmente condescendente imprensa portuguesa nos textos sobre este filme), e a redescoberta desta mesma identidade e desta memória coletiva como forma de mudar o rumo da História. História esta de marginalização, segregação e banhada a sangue e suor, utilizada como catalisador de mudança, de progresso e de luta. É um filme que olha para o passado, tal como o seu antecessor, mas que utiliza este como a força que motiva o futuro e daí vem o otimismo que falava (embora o caminho que use para lá chegar seja meio que atabalhoado).
Esta maneira de recontar a História é talvez o núcleo sobre o qual tudo o resto gira e o foco que Candyman mantém nessa tese é visível, não só na página do guião, mas no ecrã, com pontuações visuais belíssimas e criativas com uma banda sonora assinada por Robert Aiki Aubrey Lowe, desconcertante e subtil a complementar e com um pontual recurso a um estilo de animação que cimenta ainda mais a ideia do folclore ser como que manifestação dos medos e ansiedades da população mas também a forma como estes mitos urbanos e estas histórias estão a ser a fundação de uma nova História e de um novo capítulo da mesma.
É por todas estas razões que o filme de Nia da Costa é tão merecedor de atenção. Porque as suas falhas são também elas resultado de uma tentativa de fazer algo diferente com um filme com um legado muito respeitável e essa ousadia, embora traga com ela alguns obstáculos, traz também 90 minutos desafiantes, interessantes, plenos de entretenimento e que não deixam mal uma das obras do género mais importantes da década de 90.
1 comentário
Foi muito bom ler esta crítica. Eu confesso que eu nem vi o filme de 92. Mas vou ver e depois o de 2021. Eu tinha a ideia de que Candyman tinha mais sequelas. I’m probably wrong.