Blonde (2022)

de Rafael Félix

Um filme que divide é sempre bom sinal. E será difícil encontrar filme que tenha dividido tanto como Blonde, o projeto que Andrew Dominik andou a cozinhar durante os últimos 10 anos e que caiu que nem uma bomba nos canais de Veneza aquando da sua estreia explosiva na 79ª edição da Biennale, com regozijo de uns e repulsa de outros tantos.

Pela receção que obteve, sabemos imediatamente que Dominik, no mínimo, conseguiu captar o espírito da obra literária em que se baseia, dado que o retrato puramente ficcional que Joyce Carol Oates escreveu sobre a infância, a ascensão e a trágica ruína de Marilyn Monroe, foi recebida com tanta ira e admiração como foi o seu regresso à narrativa 10 anos depois do brilhante Killing Them Soflty (2012).

Estranhamente, Blonde é um dos poucos casos em que ambos os sentimentos são respostas absolutamente compreensíveis. Há muito para admirar nesta sequela espiritual de The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford (2007). Quase tanto como há de dúbio. Blonde dificilmente podia ser consensual exatamente porque não é um filme que em qualquer momento jogue pelo seguro: é audaz, é ambicioso, é extremo e é implacável. E será por esta espada que o realizador australiano irá viver ou morrer.

A transformação de Ana de Armas é só uma pequena parte daquilo que traz a (pouca) vida a Norma Jeane – mais tarde Marilyn Monroe – num filme que tem a sua pulsação a um nível de arritmia tal, que ameaça parar a qualquer momento. Apesar da excelente performance da “cada vez mais estrela” cubana, esta não chega para oferecer qualquer tipo de vitalidade a um guião que se recusa a ter um coração pulsante em qualquer segundo das suas quase 3 horas.

Isto porque esta ficção à volta da vida do astro mais brilhante dos anos 50’ de Los Angeles é inexorável a cada minuto, passando por diferentes formas de abuso moral, ético, físico e sexual, pontificadas por alguns raríssimos momentos de quietude, que também não estão isentos de formas mais subtis de tortura psicológica infligida a uma personagem que se demonstra cada vez mais passiva e cada vez mais perdida. Blonde é o pesadelo da fama tornado real, é o espreitar atrás do mito e ver a tragédia que permitiu a sua construção, como já vimos em The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford e de certa forma em One More Time With Feeling (2016) – Nick Cave e Warren Elis foram também responsáveis pela música que dá um corpo celestial a Blonde

Esta dicotomia, esta divisão profunda entre a pessoa e personagem, entre Norma e Marilyn, entre a mulher e o ícone, encontra-se marcada na fotografia e montagem errática de Chayse Irvin e Adam Robinson respetivamente, que fazem Blonde atravessar todas as lentes, todas as possibilidades de cor, exposição, corte e formato, em que o preto e branco convive com o colorido e berrante na cena seguinte, em contrastes que explicitam em linguagem visual a amálgama angustiante que é a alma de Norma Jeane.

O filme deixa bem claro que Marilyn Monroe não existe, que foi criada por Norma Jeane, mas vemos uma Ana de Armas em pranto a rezar em frente ao espelho para que esta lhe seja trazida e a leve para bem longe dali. Monroe foi construída como um mecanismo de fuga para que Norma, abandonada por um pai que prometeu voltar e violentada por cada homem que passou pelo seu caminho, consiga lidar com a brutal realidade que tem uma mulher em Hollywood, rodeada de abutres e abominações mascaradas de produtores, no entanto é este seu escape que lentamente se transforma num vórtice de miséria que nos engole desde o primeiro momento de violência até à última cena de transcendência.

Norma é pintada como alguém que dá tudo de si ao amor. É sedenta por ele, procura-o desesperadamente em todos os lugares por onde passa, como que para preencher uma lacuna deixada aberta por uma juventude solitária e violenta, mas em Blonde, é apenas Monroe que encontra devoção, nunca Norma. Nunca a mulher, apenas a sua imagem. No entanto, aquilo que liga estes dois lados de uma mesma personagem, é o facto de nenhuma delas encontrar escapatória das garras da cidade, que as rasgam e mastigam como pedaço de carne repetidamente, num ciclo sem fim de abusos e torturas por trás do glamour de Gentleman Prefer Blondes (1953)ou Some Like it Hot (1959).

Dominik dá uma passividade tal a Norma/Marilyn que estes ciclos rapidamente se tornam insuportáveis e Blonde acaba por ultrapassar linhas de exploitation que até hoje não tínhamos visto numa filmografia que de si nunca teve aspeto de pacífica. A cascata de agressão que vemos Ana de Armas passar ao longo do filme é tão incansável como humilhante, e não são assim tão raras as vezes em que a pergunta mais pertinente que se pode fazer é: “isto é mesmo necessário?”. A maioria das vezes a resposta deverá ser “talvez não”. A frieza com que Dominik aborda a vida da sua personagem é desconcertante e isenta de compaixão e humanidade, o que, se por um lado funciona como um espelho daquilo que é Hollywood, por outro levanta questões sobre a forma como o realizador está a alimentar-se da miséria de Monroe para mostrar a sua mestria atrás das câmaras, tal e qual como tantos outros que ele capta no seu filme o fizeram.

Blonde é então um quebra-cabeças complicado de resolver. Por um lado, mostra um realizador no topo das suas capacidades, das pessoas mais talentosas que o cinema produziu nos últimos 20 anos, com uma atriz que se atirou a um papel difícil com uma mão cheia de coragem num filme ambicioso, arriscado e construído com perícia. Do outro lado da balança, há o tom sujo e violento com que vemos uma mulher ser lentamente desfeita por um mundo de homens, mas captado muitas vezes de uma forma que parece tirar partido de um espaço misógino e do sofrimento de uma personagem frágil, apenas para a criação de uma obra que nem sempre tem justificação para o tipo de bestialidade de nos oferece.

É ao mesmo tempo louvável e questionável. A arte deve ser arriscada, mas onde desenhamos a linha? Blonde testa essa fronteira vezes e vezes sem conta, e nem sempre com resultados positivos.

2.5/5
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