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Blink Twice, a estreia de Zöe Kravitz no papel de realizadora, surpreende pela sua narrativa, pelos tópicos polémicos e atuais que aborda, e pela banda sonora que os acompanha. Zöe Kravitz foi co-argumentista do filme, juntamente com com E.T. Feigenbaum, e fez um ótimo papel, falhando um pouco no ritmo inicial, mas quando começa a ganhar pedal, o crescendo do mesmo é notável. O filme, para quem não souber que é um thriller, passa bem por o começo de uma de uma comédia romântica, entre a personagem Frida (Naomi Ackia) e Slater King (Channing Tatum) o antigo CEO da sua empresa. Estes cruzam olhares num evento da empresa e Frida dá por si a ser convidada para umas férias de sonho na ilha de Slater, com a sua amiga Jess (Alia Shawkat).
O filme tem tudo aquilo que nos enche as redes sociais: apology videos, ilhas isoladas à la Jeffrey Epstein, homens ricos com demasiado poder e desvalorização/abuso da mulher. Contudo, sente-se que o filme gasta demasiado tempo nesta descrição e exploração do dia-a-dia na ilha, que é o foco do primeiro ato. Mas talvez seja esse o objetivo de Zöe Kravitz, pois damos por nós à procura de algo que corra mal ou que cause mais alguma intriga, porque é de estranhar estar tudo a correr de forma tão perfeita. É a partir do momento em que o mistério começa a ser desvendado e que a primeira peça do puzzle é desbloqueada, que vemos o talento dos atores (especialmente de Ackie e Shawkat) a florescer e a trazer uma dimensão mais intensa e aterrorizante à situação em que as personagens se encontram. É também aqui que o argumento e realização de Zöe Kravitz começam a brilhar.
Zöe tem a capacidade de trazer referências do mundo real com alguma ironia, como por exemplo quando as personagens de Frida e Sarah (Adria Arjona) ponderam telefonar à polícia e ao FBI, mas apercebem-se que ninguém ia acreditar nelas, não só pela falta de provas, mas principalmente porque nestes casos é sempre o homem branco rico que fica por cima, para além de que foram elas a aceitar o convite da estadia na ilha, portanto “estavam a pedi-las”. Assim, não têm outra escolha se não cumprir com aquele pedido que os homens gostam tanto de fazer às mulheres quando dizem: “devias sorrir mais”, que aqui acaba por ser crucial de modo a não criar suspeitas e garantir que conseguem sobreviver.
Neste sentido, Blink Twice surge como uma espécie de descendente de Get Out (2017) de Jordan Peele e de Promising Young Woman (2020) de Emerald Fennell. Há sempre uma certa ignorância constante sentida pelas personagens que agem como se nada de mal se estivesse a passar. Posteriormente existe muito female rage, muitas referências ao quão podre os bastidores de Hollywood são e o quanto se continua a dar demasiado poder a homens que conseguem sempre escapar impunes a crimes e situações graves. Mas aqui, ao contrário de Promising Young Woman, podemos ver as vítimas a devolverem com a mesma violência, a dor que lhes foi causada. Aliás, aquilo que inicialmente é uma relação de competitividade entre Sarah e Frida pela atenção de Slater, ao se aperceberem do perigo que correm, torna-se numa sororidade que nos traz algum aconchego e ao mesmo tempo nos arrepia, porque temos noção do quão atual é esta ideia de as mulheres terem de se unir para lutarem contra abusos físicos/psicológicos/sexuais, por continuarem a ser vistas como objetos a serem usados, abusados e silenciados.
As performances de todo o elenco são incríveis, os atores conseguem convencer-nos da inocência angelical das suas personagens desde o início, e as atrizes, quando as suas personagens são postas à prova, soltam a fera que há dentro delas, revelando uma crueza emocional que se sente como uma reação genuína ao patriarcado e a todo o sistema que está corrompido.
Deste modo, o visionamento do filme enquanto mulher é bastante arrepiante, principalmente por de certa forma já desconfiarmos o que vai ser revelado quando as personagens começam a ter flashbacks daquilo que se passa na ilha. Arrepia o facto de se saber que não só estas coisas aconteceram na vida real, como infelizmente, apesar do movimento #MeToo, continuam a acontecer. Blink Twice é, no entanto, a prova da importância e coragem das sobreviventes desses abusos, que é tão bem ilustrada numa cena em que Frida e Sarah estão a andar em câmara lenta, armadas, com “marcas de guerra” pela roupa e pelo corpo, com uma atitude e postura confiante, enquanto no fundo se ouve o “I’M THAT GIRL” da Beyoncé, na qual a letra diz “Please, motherfuckers ain’t stopping me”.
Zöe Kravitz com uma estreia destas demonstra um futuro promissor e intrigante enquanto realizadora e argumentista. É sempre interessante e arrojado ver nomes que cresceram na ribalta a mostrar a sua indignação contra o sistema através da arte que praticam.