Black Dog (2024)

de Matilde Garrido

Há filmes que não procuram deslumbrar pela grandiosidade, mas antes pela contenção obstinada. Black Dog (Cão Preto), de Guan Hu, é um desses gestos raros: uma narrativa seca, quase brutal, na qual a redenção não se grita, antes se adivinha nos silêncios e nos gestos suspensos. Regressando a uma escala intimista, depois de incursões em épicos históricos, Hu descobre no deserto uma metáfora árida para uma China em mutação e, na ligação entre um homem e um cão, uma inesperada afirmação de humanidade. Vencedor do Un Certain Regard em Cannes, no ano passado, onde também foi agraciado com o segundo lugar no Palm Dog, Black Dog é um filme de fronteiras — entre géneros, entre tempos, entre vidas esvaziadas — que se impõe não por excesso, mas por um rigor emocional raro no cinema contemporâneo.

Hu estreou-se no cinema com Dirt (1994), um retrato cru da cena rock decadente e rebelde de Pequim, nos anos 90. Três décadas depois, parece justificado que regresse a esse universo, agora através da história de Lang (Eddie Peng), um ex-astro do rock em ruínas. Depois de dez anos na prisão, Lang volta à sua cidade natal — um espaço desfigurado, prestes a ser varrido pela modernização e pelos preparativos para os Jogos Olímpicos de 2008. É impossível não traçar paralelismos entre esta cidade-fantasma, esvaziada de vida e promessas, e a própria sensação de perda que assombra o protagonista. Numa tentativa de reinserção na sociedade, Lang aceita trabalhar numa patrulha de captura de cães vadios. É nesse deserto humano que cruza caminho com o cão preto alusivo ao título, Xin, um animal ferido física e emocionalmente. Entre silêncios e gestos mínimos, nasce uma ligação feita de sobrevivência mútua, mas também de uma esperança cautelosa. Black Dog é mais do que um drama de redenção; é uma reflexão contida sobre o que se perde quando um país escolhe esquecer para poder avançar.

A força maior de Black Dog reside na sua magistral construção formal. Desde a abertura, marcada pela presença inquietante dos cães no deserto, fica claro que Hu orquestra o caos com precisão quase cirúrgica. Trabalhando em estreita sintonia com o diretor de fotografia Gao Weizhe, o realizador aposta num widescreen anamórfico que amplia o isolamento físico e emocional das personagens. Os planos longos, os movimentos laterais da câmara e a paleta fria — dominada por azuis nublados e brancos desbotados — conferem ao deserto uma presença quase mitológica. A cidade desmoronada é filmada com uma grandiosidade fantasmagórica, evocando a solidão do western clássico e a fatalidade do noir. A mise-en-scène depurada de Black Dog cultiva a distância como expressão de abandono. É apenas quando absolutamente necessário que a câmara se aproxima dos rostos, sublinhando a interioridade contida das personagens.

Narrativamente, Black Dog é uma parábola existencial sobre a possibilidade de conexão num mundo despedaçado. Ao evitar o sentimentalismo fácil, Hu insere momentos de absurdo sombrio e desvios oníricos que fragmentam a realidade: eclipses solares, serpentes à solta, animais em fuga de um jardim zoológico em ruínas. Estes elementos, longe de serem meros adornos, constroem uma atmosfera de sonho partido, em que a redenção só pode nascer da aceitação da imperfeição.

Peng, num dos grandes destaques da sua carreira, encarna Lang com uma contenção admirável. A sua relação com Xin, não é apenas convincente, mas visceral — tão forte que, fora do ecrã, levou o ator a adotar o animal —, é o coração do filme. Este vínculo, assente em gestos mínimos e olhares partilhados, é construído com uma naturalidade que nem sempre é alcançada em outros filmes que abordam o tema da amizade entre homem e animal.

Hu, anteriormente conhecido por épicos como The Eight Hundred (Os Oitocentos, 2020), revela aqui uma impressionante capacidade de adaptação à escala intimista, sem renunciar à ambição visual. A sua abordagem ética evita qualquer traço de moralismo: Lang não é herói, é apenas um homem perdido que, ao cuidar dos resquícios de inocência que encontra à sua volta, começa a reencontrar a sua própria humanidade.

Se o terceiro ato se alonga um pouco mais do que o necessário, o filme nunca perde a sua coerência emocional. Black Dog é, simultaneamente, um western crepuscular, um retrato social desencantado e uma ode à lealdade silenciosa. A sua grandiosidade reside na forma como abraça a fragilidade, oferecendo-nos uma visão de redenção tão árida quanto o Deserto Gobi.

Talvez seja verdade que não escolhemos o cão que queremos, mas o que precisamos. E talvez também não escolhamos as nossas cicatrizes, apenas o que fazemos com elas. Black Dog caminha nesse terreno frágil, onde a solidão e o abandono são mais persistentes do que a esperança, mas onde, ainda assim, a ligação entre dois seres desajustados se transforma numa possibilidade de redenção. No fim de contas, o filme de Hu lembra-nos que, mesmo no espaço mais inóspito, a ternura pode persistir — teimosa, improvável, mas inquebrável; uma centelha de humanidade que se recusa a extinguir.

4.5/5
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