“They said the media would be tough on me if I don’t dress properly.“
Datava maio de 2017 quando a jornalista Shiori Ito tornou pública a violação que sofreu pelas mãos de Noriyuki Yamaguchi, jornalista e biógrafo do ex-primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe. Passados poucos dias, Ito, que pretende investigar a agressão sexual, vê-se confrontada com ameaças de morte e mensagens de ódio num Japão patriarcal, conservador e machista, cujas leis para este tipo de crimes não podiam ser mais anacrónicas.
Black Box Diaries baseia-se em inúmeras informações recolhidas do livro Black Box da própria jornalista, obra de memórias de teor investigativo sobre o crime, que foi lançada em 2017. No documentário, a narrativa apresenta-nos vários momentos-chave do seu processo de escrita.
O primeiro aspeto do filme que nos ressalta à vista é a câmara que se desloca pelas estradas, pelos túneis, pelas ruas e pelas paisagens sem focar em algo ou alguém… O objetivo não é outro senão este: a concentração total do espectador no que ouve e no que lê sobre o caso, através das conversas que a jornalista tem com a família, autoridades, possíveis testemunhas, etc. E, de facto, realizado desta forma, não temos como escapar à leitura e à audição que, muitas vezes, demasiadas vezes, nos choca, infelizmente.
Nomeado em 2025 para o Óscar de Melhor Documentário, Black Box Diaries vinga, sobretudo, pela sua simplicidade. Não há quaisquer apetrechos visuais que procurem apelar-nos. É nomeadamente Shiori Ito que nos apela. Com a sua câmara, o seu computador e gravador, os seus cadernos e canetas, enfrenta tudo e todos para que se faça justiça. São estes objetos, aliás, os seus verdadeiros apetrechos, no sentido que a palavra tem de munições de guerra, pois se o crime em questão é já por si só deveras traumático, a sua exposição pública na sociedade japonesa não fica nada atrás.
As vítimas de assédio e abuso sexual são estigmatizadas por todo o mundo, sendo um desses estigmas a revitimização de que são alvo, dado que após a horrível violação há o sofrimento continuado resultante da denúncia pública, que é ainda mais forte quando a pessoa acusada tem uma profissão que lhe confere bastante poder – o que se verifica aqui. Os insultos, a difamação, a burocracia político-governamental interminável e dolorosa no avançar do processo… Tudo contribui para reavivar o trauma, não trazendo qualquer paz para elas, especialmente elas.
Ainda que esta vivência não seja somente apanágio do país asiático, observamos e percebemos ao longo do filme que as suas leis absurdas só agudizam a dor de quem se chega à frente. A título de exemplo, a ausência de consentimento no ato sexual não é critério suficiente para reportar a infração: têm de existir marcas visíveis de violência extrema. A citação inicial, ademais, mostra-nos que o(s) problema(s) são sistémicos, estruturais. Só o facto de a idade de consentimento ter sido de 13 anos até há muito pouco tempo no Japão (outra lei repugnante) diz-nos muito sobre o que a jornalista teve de defrontar. E o seu filme expõe-nos quase tudo.
A coragem notável de Shiori Ito em Black Box Diaries remete-nos para a coragem igualmente notável de Gisèle Pelicot, a mulher francesa que renunciou ao anonimato perante os crimes de agressão sexual em massa que sofreu cometidos pelo seu ex-marido, que engendrou tudo, e outros homens. Mesmo que não concordando na elevação ao “estatuto de heroína” quer de Ito, quer de Pelicot, na medida em que as suas denúncias são corajosas grande parte devido à sociedade em que vivemos, o filme revela o quão urgente é falarmos publicamente de assédio e violência sexual. Quando elas e tantas outras deixarem de ser vistas como heroínas para passarem a ser encaradas como mulheres que delatam um crime que deve ser condenado em absoluto, sem que existam laivos de extrema admiração e/ou de dupla vitimização, talvez o mundo se esteja a aproximar da mudança.
Black Box Diaries é emocional, pessoal e necessário. Shiori Ito revela-se imparável na sua vulnerabilidade, que é também força ao mesmo tempo, ao decidir ser ela própria a investigar a violação para que o criminoso seja condenado, mas também porque considera ser seu dever enquanto jornalista expor as falhas do sistema político-judicial japonês no tratamento destes delitos.
Com estruturas de Estado que protegem tudo e todos menos as vítimas, Ito criou um documentário lancinante, completamente merecedor da nomeação referida para os Óscares. Uma voz que chama todas as outras vozes para falarem. E falarem alto.