Black Bear (2020)

de João Iria
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Uma ligeira névoa disforme obscura a linha que separa a ficção do factual no cinema. A atenção de um artista é atraída por interesses ou experiências similares, compelido a transmitir os temas que o absorvem, na produção das suas histórias. Apesar de Spielberg variar entre géneros e no conteúdo, certos tópicos persistem na sua filmografia como as típicas relações tensas familiares – o conceito de E.T. (1982) originou com o divórcio dos seus pais. Spike Jonze e Sofia Coppola elaboraram duas longas metragens que se complementam como uma exploração da desassociação emocional que sofreram no seu casamento. Nem toda a arte é inspirada por eventos biográficos, contudo, como Greta Gerwig mencionou acerca de Lady Bird (2017), existe uma verdade pessoal no seu desenvolvimento. Um espaço de veracidade humana enevoada por manipulação criativa. 

Black Bear é uma comédia negra dramática sobre a intersecção de Alison (Aubrey Plaza) com Gabe (Christopher Abbott) e Blair (Sarah Gadon), numa casa de lagoa remota. Uma jovem atriz e realizadora que procura inspiração para o seu próximo projeto entre um casal cuja relação parece deteriorar com cada copo de vinho. Os três caem numa simbiose narrativa, perdidos em descontrolo, desejo e autodestruição, questionando a essência da invenção e os limites psicológicos do processo criativo.

Dividido em dois capítulos, esta é uma experiência cinematográfica semelhante aos trabalhos do realizador Sul-Coreano, Hong Sang-soo, que perfura uma intensidade idêntica aos clássicos de John Cassavetes. Lawrence Michael Levine escreve e realiza uma sátira inteligente e mordaz a indie filmmaking com uma profunda desconstrução analítica da identidade artística, disfarçado de Who’s Afraid of Virgina Woolf (1966)

Um argumento impiedoso e poderoso, disposto a reinventar-se com cada pedaço de diálogo simultaneamente divertido e apavorante, como uma espécie de Inception (2010) construído com mentiras e manipulação. Levine examina a toxicidade nas relações entre os criadores e as suas musas num enredo fascinante sobre os perigos de transformar dissimulações em autenticidade com o intuito de usar esta numa arma. Um filme perturbador com um sentido de humor diabólico que imagina o cenário de um Stanley Kubrick casado com uma Shelley Duvall durante as filmagens de The Shining (1980)

Aubrey Plaza entrega uma das melhores performances do ano, com a sua frieza constrangedora habitual a ser analisada perante um ambiente pesado de inseguranças traumáticas. Sem restrições emocionais ou físicas, Plaza interpreta um dos terceiros atos mais devastadores de acting que presenciei em 2020. Ela é hilariante, misteriosa, assustadora, sensual, desesperada e comovente; a sua prestação extraordinária impactou a minha perspetiva acerca de method acting e resulta numa reflexão da própria indústria na sua desvalorização humana em função das artes. Alison é apresentada como uma mulher com várias vidas e passados diferentes, impedindo a audiência de alguma vez descodificar a verdadeira verdade nela, uma noção comum para qualquer ator ou criador e um objetivo que a protagonista concretiza perfeitamente.

Christopher Abbot e Sarah Gadon revelam-se como uma dupla fantástica que encaixa naturalmente nos espaços e na metamorfose destas personagens, desde as cenas ingénuas como peões no jogo de Alison, destruídos pelas suas ambições derrotadas até uma monstruosa versão de Gepetto, que observa entes próximos como marionetas. Este trio compromete-se completamente às páginas do argumento, todavia, Aubrey detém o espectáculo nas suas mãos, expondo emoções descontroladas, a sangrarem perigosamente pela narrativa.

Cada elemento que surge no segundo capítulo, pertencente ao elenco secundário, surpreende pelas suas caracterizações detalhadas memoráveis, realçados pela forma como desencadeiam um espaço familiar, agitado e ansioso, apropriado para a intensidade desagradável do local e oferecendo uma necessária recreação que combate a penosa e turbulenta carga dramática. 

Levine integraliza cada capítulo com um estilo particular de realização e fotografia, no primeiro utiliza a câmara para enjaular as personagens numa discussão pavorosa e atmosfericamente opressiva que prende o espectador aos diálogos e ao desconforto do espaço e no segundo destaca a experiência caótica de filmagens com um registo documental que salienta o sofrimento de Alison e aproxima o espectador do seu colapso, confrontando a audiência com o psique sombrio escondido na sombra do entretenimento. 

A conclusão arrisca-se à desilusão, ao abster-se de uma resolução inteligível e aplicar-se a uma ligação estrutural pouco concreta. A natureza aberta de Black Bear pertence ao seu desígnio de exprimir a charada imaginativa impenetrável que reside nos autores e o segredo místico que permanece acerca da sua existência. O público recebe o quadro final, as tintas permanecem com o criador.

Revestido com textura meta que preenche a génese desta longa-metragem com suspeições cautelosas sobre a veridicidade do produto final e da sua formação. Aubrey Plaza está presentemente casada com um realizador com quem colaborou no passado e uma dedicação nos créditos finais de Levine à sua mulher, Sophia Takal, atriz e realizadora, delineia um enigma acerca das origens desta história e as possíveis componentes de influência biográfica. A verdade pessoal do seu desenvolvimento persiste como incógnita.A separação entre arte e artista perdura como uma temática complexa de atingir um consenso geral, sobretudo quando os enredos são representativos dos seus criadores que sublinham essa forte união. Black Bear recusa-se a conceder respostas, contestando o perigo de menosprezar individualidade em função da eterna película e paralelamente valorizando o cinema como um medley de intenções que espelham a humanidade num nebuloso e íntimo conto empolgante para uma plateia diversificada. Funciona como uma ação de terapia artística, uma exploração de assuntos relacionáveis e a manipulação da verdade. Distante de uma definição explícita, Black Bear é um acto de provocação e consciencialização da beleza angustiante na arte de storytelling.

4.5/5
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