Bird (2024)

de Pedro Ginja

Trauma e beleza não são palavras que costumem andar de mãos dadas. No cinema há sempre uma necessidade de exacerbar o sofrimento do herói para que quando a “justiça” prevaleça, a viagem tenha valido a pena. A validação vem de um processo em que o indivíduo se torna um mártir do espectador digno de pena e de uma segunda oportunidade no caminho da felicidade. Andrea Arnold vê o mundo de uma maneira bem diferente. Os seus heróis nunca são genéricos ou designados de forma geral, são no feminino, exclusivamente, e não há espaço para a “marvelização” dos seus feitos ou conquistas, de vencer sempre perante toda e qualquer adversidade.

Bailey (Nykiya Adams) é mais uma entre tantas outras heroínas anónimas dos tempos modernos segundo o mais recente filme de Andrea Arnold, Bird. Nos subúrbios de Gravesend, no condado de Kent, vive com o seu pai Bug (Barry Keoghan) e irmão Hunter (Jason Buda). A vida não é fácil para Bailey, separada da mãe e das irmãs, e refém de uma realidade onde drogas, precariedade, pobreza e violência são moedas de troca na sobrevivência pessoal. Não parece haver um porto de abrigo na sua existência até que conhece Bird (Franz Rogowski), um misterioso estranho. Será ele a chave para a sua salvação?

Está enraizada em nós a necessidade em agravar o que é penoso, facto bem patente nesta sinopse, que mostra propositadamente o nosso preconceito sobre os “tantos” que nos envolvem e que escolhemos manter nas sombras como um problema que não nos pertence. Esta “Bailey” é de Kent, mas poderia ser da linha da Sintra, das ruas de Lisboa ou aquela “estranha” que passa por nós e que não merece sequer o nosso olhar. Andrea Arnold não está interessada nesse sentimento do desconhecido e introduz a sua heroína num momento de contemplação, próximo e pessoal, da beleza de um pássaro que voa longe no céu azul. Uma quimera, poder-se-ia dizer, como a personificação de um sonho, à primeira vista distante e desfocado, mas que, no argumento de Arnold, adquire um tom de fantasia de um mundo sonhado e que desce a seus pés para trazer a salvação.

O voltar à realidade acontece com a entrada de Bug em cena, rompendo o silêncio do momento com a voz em altos brados. O sentimento é de repulsa, pois estamos de volta à realidade e essa nunca é tão apetecível como o mundo dos sonhos. Esta reacção é outra sensação que a narrativa procura incutir, o poder das primeiras impressões, com particular incidência sobre Bug, interpretado por Barry Keoghan, desprovido da noção do ridículo, com um papel mais de amigo e irmão do que propriamente de pai de Bailey, também ele preso no seu mundo. Incompreensível nas suas reacções, extravagante e iludido (pensa que vai enriquecer com um sapo, imagine-se) mas que esconde, por detrás das muralhas que ergueu como protecção, um coração protector a bater. Barry Keoghan mantém o seu Bug sempre no limiar de ser desprezível mas sem nunca o cruzar totalmente, revelando a complexidade que incute à sua personagem.

Do lado da fantasia surge uma personagem enigmática de nome Bird, interpretada por Franz Rogowski, que procura alguém do seu passado. Mais uma personagem perdida no seu próprio mundo e incompreendida pelo outro que o rodeia. Arnold dota Bird de uma inocência angelical, quase um extraterrestre vindo de um longínquo planeta, sem qualquer noção das regras da sociedade. Rogowski, sempre fascinante, cria alguém que habita num plano alternativo de existência. A sua extraordinária habilidade de encarnar personagens, à margem do considerado normal, e sempre conseguir conectar-se com o espectador, de um modo tão profundo, é um tesouro que todo o mundo precisa de descobrir.

O maior tesouro deste filme de Andrea Arnold é, no entanto, Nykiya Adams no papel de Bailey. Parece inacreditável como uma estreante de apenas 12 anos consegue criar este “monumento” de personagem. Nota-se a fragilidade da sua falta de experiência em certos momentos, é certo, mas compensa com a inteligência de compreender e reagir em igual proporção aos seus colegas de cena, o que revela um talento nato. A isto alia-se um instinto de saber deixar-se levar pelas emoções e a progressão da narrativa. Nada parece forçado e tudo flui de um modo tão orgânico e natural que é impossível não se deixar levar nesta sua viagem especialmente no final, que nos inunda com o seu tsunami de emoções. Esta abordagem na escolha de actores não profissionais reflecte-se também no restante elenco com talentos bastante díspares mas onde nunca falta autenticidade e muito coração.

De um tsunami de emoções para uma montanha-russa de intensidade nas escolhas de direcção de fotografia: a cena inicial entre Bailey e Bug, já referida anteriormente, é um bom ponto para analisar. De planos aproximados de Bailey em contemplação e planos retirados do seu próprio telemóvel, tremidos e desfocados, reforçando a sua intimidade e senso pessoal para uma mudança radical, quando Bug surge à sua procura, de câmara na mão, também tremida mas focada, e perseguindo a grande velocidade os seus protagonista como maneira de mostrar o regresso atribulado à sua realidade e ao que enfrenta todos os dias. Existem outros exemplos de contemplação onde os planos de pormenor abundam, como espigas que dançam com o vento, raios de sol que atravessam uma árvore ou da face de Bailey, sorrindo, a dormir na natureza. Bird, esse, surge muitas vezes distante, no topo de um edifício, caminhando à distância, longe de vista, emulando o pássaro com que Bailey sonha no princípio. O próprio silêncio é exclusivo destes momentos, muito raros na história, mas que repercutem com maior intensidade na nossa memória auditiva, distante do barulho circundante opressivo e esmagador, como a visão de um oásis no meio do deserto.

Impossível falar de “barulho” sem falar das escolhas musicais. Não digo isto num sentido de crítica velada mas com um sentimento de alívio por Bird ter a coragem de ir por caminhos inesperados mas tão reais para as suas personagens, parecendo quase o espelho da sua personalidade e vivência pessoal. Pessoalmente ressoam, ainda mais, profundamente por algumas delas como Coldplay e The Verve fazerem parte dos meus anos formativos. Quem não cantar a alta voz, mesmo que apenas no interior da sua mente, a Yellow dos Coldplay nessa icónica sequência do filme (pontos extra se cantarem durante a vossa sessão no cinema).

Num mundo concentrado na negatividade e no pior do ser humano, é refrescante ver um mundo em que o bem e o bom que há em cada um de nós parece tomar a dianteira, e ficar visível perante os nossos olhos. Desengane-se no entanto, quem ache que isto é uma viagem fácil, nunca o seria vindo de quem vem, mas Bird é um passo por novos e inesperados caminhos na filmografia de Andrea Arnold. Vê-la levantar voo desta maneira é uma benção, e uma necessidade vital, para qualquer amante de cinema.

5/5
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