O regresso da Berlinale em todo o seu esplendor. Pelo primeiro ano, após o início da pandemia, foi possível desfrutar do festival e de tudo o que oferece em total liberdade e sem as habituais restrições dos últimos dois anos. Notou-se, em Berlim, esse facto com um absoluto triunfo de salas quase sempre totalmente esgotadas. A ânsia de ver cinema de qualidade era já muito grande e em 2023 foi finalmente possível.
Berlim, e em particular a Berlinale, é um palco de exploração artística e entretenimento. As duas faces do cinema, sempre em constante oposição, mas que este festival procura promover. Criado em 1951, no início da guerra fria, sempre foi uma monstra do mundo livre. Desenvolveu-se, também, como um lugar de interculturalidade e uma plataforma para a exploração de causas sociais e políticas.
E este ano não foi excepção com uma parte do programa dedicado aos eventos que afetam o mundo. O primeiro destaque foi a guerra da Ucrânia com a estreia de muitos filmes dedicados ao conflito e ao povo ucraniano. O grande destaque foi a estreia do documentário de Sean Penn e Aaron Kaufman, Superpower, com a presença de toda a equipa envolvida no projecto numa das muitas galas especiais do festival.
O outro grande tema na agenda, tanto na programação como nos vários discursos durante os vários momentos do festival, foi a situação política no Irão, em que a repressão do governo iraniano tem afetado a população dissidente do país que clama por mudança. A comunidade artística é uma das mais afetadas e conta com inúmeras prisões ou fuga para o estrangeiro de quem se coloca contra a opressão do governo. Golshifteh Farahani, uma dos membros do júri da Berlinale, foi a voz da luta de todos os iranianos e cerca de 7 filmes do país estiveram presentes em apoio ao povo do Irão.
A competição deste ano demonstrou uma secção com uma infinidade de propostas tão diferentes, totalizando 19 filmes. Destaque para o nosso João Canijo com Mal Viver, o regresso de Christian Petzold com Roter Himmel, o veterano Phillipe Garrel com o seu Le Grand Chariot, a animação de Makoto Shinkai com Suzume e Nicholas Phillibert com Sur l’Adamant. Dos novos nomes tenho de destacar o Past Lives de Celine Song, Disco Boy de Giaccomo Abruzzese, 20000 especies de abejas de Estibaliz Urresola Solaguren (que me recordou a naturalidade de Alcarrás) e Manodrome de John Trengove, este não propriamente um estreante mas um novo nome para mim.
Outras secções como a Encounters, com a sua selecção que busca propostas mais audazes visualmente e estruturalmente; a Panorama que procura o extraordinário; a Forum & Forum Expanded para reflectir sobre o cinema, do ponto de vista social e artístico; Generation para os novos cineastas de filmes internacionais; as Berlinale Shorts dedicado às curtas; A Perspektive Deutsches Kino para filmes de estreantes com um estilo individual bastante específico; as Retrospectives & Berlinale Classics dedicado à história do cinema e à revisitação de clássicos, e para terminar a Homage, que este ano foi dedicado ao grande Steven Spielberg, numa belíssima cerimónia. Todos juntos perfizeram mais de 400 filmes exibidos entre dia 16 e dia 26 de Fevereiro. Estivemos presentes nestes 10 dias intensos e contamos, nas próximas linhas, os destaques de cada dia.
Quarta-Dia, dia 15 de Fevereiro
O pré-arranque do festival trouxe apenas um filme, She Came to Me (Special Gala) de Rebecca Miller sobre um compositor em plena crise criativa que encontra, numa capitã de um barco, a sua musa de inspiração para voltar ao activo. Comédia romântica com um twist moderno e original mas que desilude ao cair nos habituais caminhos de filmes do género quando o objectivo era ser diferente. Anne Hathaway parece estar a divertir-se à grande, no entanto.
Quinta-feira, dia 16 de Fevereiro
O primeiro dia completo da Berlinale chega e com ele o início de uma excelente semana cheia de grandes filmes. Mas, neste primeiro dia, nem tudo começou pelo melhor com a escolha de Mammalia (Forum) de Sebastian Mihailescu, uma narrativa experimental surreal com um argumento fraturado e sem sentido. Há referências a mitos, cultos de fertilidade e à mutabilidade feminino/masculino mas não consegue desenvolver nenhum de modo satisfatório. Tenta ser Midsommar (2019), com a procura da beleza nos planos, e Wicker Man (1973), no estabelecimento da atmosfera mas não consegue ser nenhum. Grande desilusão.
No final do dia ainda tempo para ver o novo filme de Matthew Johnson, BlackBerry (Competição). Acompanha a ascensão meteórica do primeiro smartphone e também a queda vertiginosa para o abismo de onde nunca mais saiu. Mas é Mike Lazaridis o seu fundador a quem a história se agarra, do génio inocente a um homem desesperado numa década. Retrato fidedigno deste tempo e entretenimento puro de um biopic, que ninguém pediu, mas que satisfaz.
Sexta-feira, dia 17 de Fevereiro
De volta às salas, logo pela manhã, para ver Irgendwann werden wir uns alles erzahlen (Competição) de Emily Atef, que acompanha um triângulo amoroso em pleno período de transição para uma Alemanha unida após a queda do muro de Berlim. Belíssima iluminação e trabalho de fotografia e com uma realização inspirada de Emily Atef. Falta foco no argumento com muitas sub-histórias que não levam a lado nenhum e um dos vértices do triângulo amoroso é quase ignorado na segunda metade do filme. O elenco é de grande qualidade com destaque para Marlene Burow e Felix Kramer. Nada de novo por aqui mas não desaponta.
AI: African Intelligence (Forum Expanded) de Manthia Diawara foi uma agradável surpresa pelo tema, em que se discute os pontos de contacto entre os avanços tecnológicos como a inteligência artificial e a cultura africana dos rituais de possessão – O racional vs o espiritual. Nem sempre faz sentido no que diz e repete-se muitas vezes mas experienciar o ritual Ndeup e as cerimónias de possessão pelo poder da dança e da música é uma visão inesquecível. Mére-Bi, uma anciã da tribo Lebou justifica, por si só, ver este filme pelo carisma que transmite a quem se cruza com ela. Pena a constante voz-off, para explicar o que é necessário sentir, e uma realização pouco inspirada.
A desilusão do dia chegou com The Adults (Encounters) de Dustin Guy Defa que fala de vicío do jogo, irmão desavindos e diálogos quirky, tão característicos da cena indie americana, mas de uma forma demasiado constrangedora e nunca se deixa envolver emocionalmente com as personagens. Foi bom voltar a ver Michael Cera mas mesmo ele não consegue dar o rumo certo a esta história.
Sábado, dia 18 de Fevereiro
O fim-de-semana chega e com ele a primeira boa surpresa do festival em Manodrome (Competição) de John Trengove, um estudo sobre masculinidade nas suas diversas formas e em busca do que significa ser homem no mundo actual. Segue Ralphie (Jesse Eisenberg) um homem-criança, incapaz de lidar com os seus sentimentos e emoções. Jesse Eisenberg tem a capacidade de comunicar esta inabilidade não apenas através de palavras mas também com a sua fisicalidade e energia nervosa que irradia para quem se cruza com ele. Um homem sempre à beira da loucura. Falha quando procura um final e não o encontra (várias vezes) mas a personagem de George Muresan tem a solução ideal.
Logo a seguir ao visionamento de Manodrome houve a conferência de imprensa com John Trengove e o elenco com destaque para Jesse Eisenberg, Adrien Brody e Odessa Young. Jesse Eisenberg falou de os homens não estarem preparados para lidar com as emoções e de ninguém estar preocupado com isso o que acaba por levar à questão do acesso a armas nos E.U.A como uma progressão óbvia. Por outro lado John Trengove referiu a toxicidade masculina, de os homens terem mentes de crianças em corpo de adulto e que o escondem compensando com agressão e violência.
Continuamos pela sala de imprensa para a apresentação de Superpower (Special Gala), pelos realizadores Sean Penn e Aaron Kaufman, documentário filmado nos primeiros dias do início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Sean Penn revelou que foi o presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, o primeiro a ver o filme pois era importante a sua aprovação. Mais adiantou que não é imparcial e é pelos ucranianos, atacados no seu país por um homem (Putin) que não merece qualquer confiança. “Até que Putin seja afastado do poder não acredito que a guerra vá acabar” colmatou. Sean Penn terminou com um pensamento do presidente Zelensky em que afirma que tem de odiar os russos “É o meu trabalho fazê-lo, para que os meus filhos não tenham de o fazer no futuro e a paz possa finalmente voltar”.
E o dia terminou em beleza com o visionamento de Disco Boy (Competição) de Giacomo Abbruzzese, umas das melhores surpresas do festival, com uma interpretação sólida de Franz Rogowski. Hipnótico, psicadélico, surpreendente e a certeza de termos encontrado um novo talento em Giacomo Abbruzzese.
Domingo, dia 19 de Fevereiro
Foi um dia de voltar ao passado na secção de Retrospective, que este ano pediu a vários realizadores sugestões de filmes de temática “Coming of Age”. A escolha de Martin Scorsese foi Prima della rivoluzione (1964) de Bernardo Bertolucci, a história de um homem a navegar a vida, em pleno período de turbulência política, e das normais indecisões da vida. Um filme tremendamente pessoal e vibrante em que Parma (terra natal de Bertolucci) é também parte da narrativa. A modernidade do argumento é notável e foi um belíssimo tesouro descoberto graças ao festival.
Logo de rajada entrei noutro tesouro, este já conhecido, mas nunca pessoalmente experimentado no grande ecrã. Ver E.T. the Extra-Terrestrial (1982) de Steven Spielberg, como parte da sua celebração de carreira do realizador no festival, Foi de longe o momento mais emocional da minha passagem pela Berlinale por diversas razões: a nostalgia, uma sala esgotada e a história emocional de um extraterrestre que só quer regressar a casa. Vai ficar para sempre no meu coração.
Tempo para mais uma conferência de imprensa, desta vez de Disco Boy de Giacomo Abbruzzese, em que o realizador revelou a dificuldade de arranjar financiamento para uma história em que poucos acreditavam. “Quando entra no mundo espiritual e longe da razão é difícil passar a mensagem do que queremos transmitir” afirmou Giacomo. Mesmo o próprio Franz Rogowski precisou de muita insistência para aceitar o trabalho. Só à terceira tentativa do realizador é que Franz disse aceitar. A fotografia é outro ponto importante e Hélène Louvart, directora de fotografia, falou da importância de servir a história. “O importante é seguir a visão do realizador e não exagerar na concepção. Servir a história” colmatou Hélène.
Ainda houve tempo para Golda (Special Gala) de Guy Nattiv, em que Helen Mirren é Golda Meir, primeira ministra de Israel durante um dos seus momentos mais tensos na guerra de Yom Kippur em que Israel foi ameaçado de aniquilação. Biopic competente, graças ao trabalho de Guy Nativ, e com Helen Mirren a desaparecer na caracterização mas não na intensidade. Por ela e pela lição de história já o vale a pena ver.
Para terminar o longo dia, ainda tempo para #Manhole (Special) de Kazuyoshi Kumakiri, uma alegoria dos tempos modernos e das redes sociais, passado quase em exclusivo num bueiro de esgoto. Surpreendentemente engraçado e com um mistério e twists interessantes. Os pormenores da cultura japonesa, em destaque, dão-lhe um charme especial.
Segunda-feira, dia 20 de Fevereiro
Num dos dias menos brilhantes do festival começamos, de manhã, com Inside (Panorama) de Vasilis Katsoupis, em que um assalto, que corre mal, deixa Nemo (Willem Dafoe, numa das suas interpretações mais físicas dos últimos anos) preso numa penthouse, rodeado de arte. Quando horas se tornam meses, os limites físicos e mentais de Nemo são testados. Interessante no conceito de solidão, na concepção visual e na actuação de Dafoe mas o argumento caí na repetição e num final que aparenta grandiosidade mas falha a marca por muito.
O veterano Phillipe Garrel regressa a Berlim com Le Grand Chariot (Competição), sobre uma família de marionetistas, que trabalha por amor mas mal consegue pagar as despesas. Filme muito pessoal, inspirado no passado da família Garrel, e em que o elenco são os seus filhos, Louis, Esther e Lena Garrel. Os conflitos, amor, amizade, luto, tão queridos à filmografia de Garrel conseguem transmitir emoção e paixão mas não trazem nada de relevante ou único.
O ponto mais interessante do dia foi a conferência de imprensa de Golda de Guy Nattiv. O realizador falou muito do casting tanto de Helen Mirren como da importância de acertar no de Henry Kissinger. Afirma que acertou, em pleno, com Liev Schreiber. Falou da vilificação de Golda Meir, após este período turbulento, em Israel, mas o seu papel de criação de paz após a guerra do Yom Kippur não é de menosprezar. O tema do fumo e do tabaco foi levantado e o seu uso, além de mostrar como Golda era uma fumadora inveterada, também serve de metáfora para o termo “Smoke and Mirrors”, em que informação irrelevante ou falsa foi essencial para a manutenção de um equilíbrio de paz. “Sem ela, provavelmente, não existiria Israel nos moldes actuais. Foi tudo graças a Golda Meir” concluiu Guy Nattiv.
O dia termina com mais um filme da homenagem a Steven Spielberg, Duel (1971), o primeiro filme do realizador, feito para a TV. Vê-lo no grande ecrã era uma oportunidade a não perder e não desilude. Já está lá a maestria e o olho para o cinema de Spielberg mas os diálogos não envelheceram tão bem como outros filmes do autor. Mesmo assim uma experiência muito positiva.
Terça-feira, dia 21 de Fevereiro
O dia mais ocupado deste Berlinale começou cedo com Music (Competição) de Angela Schanelec, sobre o mito de Édipo. Uma estrutura não linear, um elenco desprovido de emoção e uma infinidade de enigmas que o tornam críptico em excesso. Logo a seguir estivemos na conferência de imprensa de Music em que Angela Shanelec falou de música como uma nova linguagem para descrever uma história clássica. “Como não escrevo música procurei a música que o filme precisava durante muito tempo. Era muito importante e por isso passei um ano só à procura da música certa” concluiu Angela. Os actores falaram de um ambiente de liberdade para criar as suas personagens e de haver uma poesia no filme difícil de decifrar.
Logo de seguida recebemos, na sala de conferências Phillipe Garrel e o elenco do seu filme Le Grand Chariot (Competição) Começou com uma declaração sobre as suas ideias do filme. “O meu maior prazer (de fazer este filme) foi fazê-lo com os meus filhos. Passar tempo com eles são sempre tempos bem passados. Falou também da relação talento/trabalho, e que nem sempre ter talento equivale a ter trabalho, e ressalvou que existem muitos actores sem talento a trabalhar em grandes projectos. “…Faz parte da vida” concluiu.
Ao início da tarde houve visionamento de 20000 Especies de Abejas (Competição) de Estibaliz Urresola Solaguren onde se fala sobre a crise de identidade de uma criança que não se identifica como um rapaz, apesar de ter nascido menino com o nome de Aitor. Uma interpretação fabulosa da protagonista, Sofia Otero, num filme com uma sensibilidade e naturalidade de louvar. Centra-se sobre o ponto de vista da criança e não dos que a rodeiam como costuma ser o caso geralmente. Umas das surpresas mais bonitas do festival.
E depois aconteceu o momento mais esperado, pessoalmente, do festival. A conferência de imprensa com Steven Spielberg; uma verdadeira inspiração. Foi exatamente nesse tema que referiu a importância da inspiração de outros mestres da 7ª arte para a sua formação como realizador. Referiu ainda muitos dos seus colaboradores de longa data, com quem tem o privilégio de trabalhar em cada projecto como John Williams, Michael Kahn e Janusz Kaminski do qual revelou ter sido um “casamento” feito no céu, o facto de o ter encontrado para o primeiro projecto em conjunto, Schindler’s List (1993). Segundo Spielberg o filme mais difícil fisicamente foi Jaws (1975) e emocionalmente foi The Fabelmans (2022), que segundo Spielberg só existe devido ao medo sentido, nos primeiros dias da pandemia de COVID, que lhe deram a coragem para avançar e escrever a sua história, ou uma versão dela. Nota final para o projecto em que trabalha actualmente, como produtor, de uma série em 7 partes da HBO sobre Napoleão Bonaparte. Baseia-se em notas deixadas por Stanley Kubrick, de um projecto no qual trabalhava antes de morrer.
O dia já ia longo mas ainda houve tempo para ver Infinity Pool de Brandon Cronenberg, uma fábula sobre a vida como um fenómeno descartável. Divisivo, transgressivo e polémico, significa que não agradará a todos mas a indiferença não reina aqui. Mia Goth continua a reinar no terror – God Save the Queen.
E o fim do dia chegou com a maior desilusão do festival em mul-na-e-seo de Sangsoo Hong (Encounters), sobre um grupo de amigos a discutir a criação cinematográfica. Nada tem a dizer e não aparenta ter nenhum objectivo concreto para além de irritar o espectador com a câmara quase sempre fora de foco.
Quarta-feira, dia 22 de Fevereiro
Christian Petzold foi o anfitrião nesta primeira sessão do dia com Roter Himmel (Competição) que fala de um escritor em plena crise criativa. Decide viajar com um amigo para um lugar remoto para encontrar inspiração mas encontra bem mais que isso. O maior elogio que se pode fazer a Roter Himmel é o facto de misturar drama, romance, comédia e um pouco de terror sem nos apercebermos bem onde nos encontramos de momento. Não é Petzold no seu melhor mas é bastante bom.
Logo após isto, começou o dia de João Canijo. E em primeiro lugar foi Viver Mal (Encounters), uma peça em três actos ou 3 peças num filme, o que lhe queiram chamar. O que é certo é a maestria de João Canijo e a beleza presente nos planos e luz de Leonor Teles, na história que contam dos clientes do hotel, de um formalismo reverente a Strindberg e que alimenta o conflito das 5 mulheres, que gerem o hotel. Tudo interligado e tudo tão belo. De longe o melhor filme do festival. Logo a seguir veio a conferência de imprensa sobre Mal Viver, em que se ressalvou a importância de Canijo e Leonor Teles para elevar este filme ao patamar que alcançou. Anabela Moreira referiu o amor de Canijo por mulheres, bem patente nesta história, quase toda no feminino. Alguns jornalistas referiram as personagens serem más, ao que João Canijo respondeu que é tudo Strindberg, tudo foi retirado das peças dele. Leonor Silveira acrescentou que o amor é a experiência mais “monstruosa” da nossa vida e que nem sempre é bonito enquanto Rita Blanco admite que o ser humano, mesmo quando ama, não é perfeito – “Faz parte da natureza humana magoar o próximo mesmo que não haja essa vontade”.
Seguiu-se a conferência do filme Infinity Pool com a presença do elenco principal e do realizador. Brandon Cronenberg falou da importância da cenografia ser física e não dependente de efeitos especiais para criar uma reacção mais visceral e facilitar a imersão dos actores. Para Mia Goth, trabalhar com Brandon foi algo natural, porque gosta dos seus argumentos provocadores e que a inspiram a ultrapassar limites e a fazer um melhor trabalho – “Estar desconfortável é algo do qual não fujo e que me torna uma melhor actriz”. Para Alexander Skarsgard, a sua personagem James é um homem quebrado pela vida – Um fantoche nas mãos dos outros, neste caso de Gabi (Mia Goth) – “ Eles são mais similares do que aparentam. Ambos têm carreiras falhadas e são casados com pessoas de posses. Mas o controlo está sempre num dos lados e neste caso está em Gabi”.
Art College 1994 (Competição) de Liu Jian foi o primeiro filme de animação da competição a ser exibido e acompanha um grupo de estudantes de arte chineses apanhados entre a modernidade e a tradição, enquanto descobrem o caminho que querem percorrer. Cómico e irreverente, consegue mostrar o panorama artístico chinês ao ocidente de uma nova forma.
E para terminar em beleza, a grande gala de estreia de Mal Viver de João Canijo, no enorme Berlinale Palast completamente esgotado. Com a presença de todo o elenco e equipa técnica pudemos assistir à história de 5 mulheres que gerem um hotel, unidas por uma tragédia do passado, e com assuntos por resolver. No final do visionamento de ambos os filmes, o sentimento é de deslumbramento pela obra criada por João Canijo e iluminada por Leonor Teles. O elenco é absolutamente extraordinário no seu todo e potenciado ao sublime pelas circunstâncias do tempo de filmagens (pandemia COVID). Canijo sempre foi bom mas nunca assim tão bom. Que grande final de dia.
Quinta-feira, dia 23 de Fevereiro
Este foi o último dia para apresentar filmes da competição e essa honra coube a Suzume de Makoto Shinkai. O seu último filme é de uma beleza estonteante e puro entretenimento para as massas (sem dúvida o melhor nesse aspecto na competição). As personagens são fortes, algumas inesperadas mas todas demasiado irresistíveis para o comum dos mortais. Existem referências a desastres reais e o luto é parte integrante da história mas são o amor e o sacrifício os principais protagonistas. Makoto Shinkai nunca desaponta. A conferência de imprensa, logo após o filme, permitiu descobrir que a história surgiu do tsunami que varreu o Japão em 2011 e matou cerca de 20.000 pessoas. A animação permite que chegue a um maior número de pessoas e foi uma maneira de lidar com a dor, pois ainda está muito presente na mente dos japoneses. As maiores inspirações de Makoto Shinkai vieram de Kiki’s Delivery Service (1989) de Hayao Miyazaki, para a criação de uma personagem feminina forte.
I Heard it Through the Grapevine (Forum Special) de Dick Fontaine foi o clássico escolhido do dia e acompanha James Baldwin na visita a lugares históricos do “Civil Rights Movement” americano onde se apercebe que muito pouco mudou e o racismo ainda está muito presente na sociedade. Faz-nos reflectir se, no presente, as mudanças são relevantes ou se estamos ainda no mesmo caminho. Este é um documento histórico imprescindível da história americana e tão relevante hoje como há 40 anos atrás. Fica a questão, para quando a real mudança?
Para finalizar o dia, um visionamento muito especial de Tár de Todd Field, com a presença do realizador e do elenco principal como Cate Blanchett, Nina Hoss e Sophie Kauer. Que profundo e complexo retrato de uma genial condutora de orquestra de nome Lydia Tár. Está tudo nos ombros de Cate e ela não desilude mas não existe nenhum elo fraco neste elenco. O argumento é críptico, disruptivo e nunca se inibe de contar as duras verdades, uma bênção nos dias de hoje. As sequências de sonhos estão deslumbrantes mas foi o som e a música que me causaram mais arrepios, principalmente aquele Cello Concerto de Edward Elgar. E aquele final ainda me persegue até hoje. Mais um magnífico momento na Berlinale de 2023.
Sexta-feira, dia 24 de Fevereiro
Este foi o meu ultimo dia na Berlinale, que ainda permitiu ver um ultimo filme antes dos balanços e conclusões finais do festival. Cidade Rabat (Forum) de Susana Nobre foi o filme escolhido. Este fala de Helena, uma mulher presa nas suas rotinas até que um evento traumático a faz repensar a vida. Tem uma costela de naturalismo e reflecte sobre o impacto social do trabalho comunitário, um tema deveras interessante. Não deslumbra ou traz algo de novo mas relembra as possibilidades de tentar algo de novo para mudar algo em nós.
No dia seguinte era tempo de deixar Berlim mas também era tempo para escolher os vencedores. Podem verificar a lista de todos os vencedores AQUI.
Para a organização do festival este foi um grande sucesso de público com mais de 320.000 bilhetes vendidos até ao último dia do festival, números muito parecidos com os da Berlinale na pré-pandemia (em 2020 foi de 330.000 espectadores) mas bem superiores aos do ano passado que atingiram os 156.472, devido às restrições das salas em 50% da ocupação. Além do público estiveram em Berlim mais de 20.000 profissionais da indústria e 2800 jornalistas para cobrir o evento, perfazendo 132 países de todo o mundo presentes nesta 73ª Edição.
Em jeito de balanço final, e sem ordem de preferência, decidi escolher o meu top 5 de todos os filmes em competição da Berlinale a que assisti:
– Mal Viver/Viver Mal de João Canijo
– Disco Boy de Giaccomo Abbruzzese
– Roter Himmel de Christian Petzold
– Suzume de Makoto Shinkai
– 20000 Especies de Abejas de Estibaliz Urresola Solaguren
Para além do excelente cinema houve tantos outros momentos ou sensações especiais durante o festival que acho importante partilhar. A primeira e a mais intensa de todas foi algo que não sentia desde os tempos de criança. Aquela sensação de entrar numa sala de cinema sem saber o que esperar, o nervoso miudinho de que daqui a umas horas podemos ter visto algo extraordinário ou, como a vida nos ensinou, uma grande perda de tempo. Ambos aconteceram nesta 73ª edição da Berlinale mas não deixou de ser excitante a vivência de cada sessão.
As próprias salas dos visionamentos eram de uma qualidade excelente o que ajudava no sentimento de imersão e estavam quase sempre esgotadas o que potenciava as emoções e os sentimentos. Para além disso houve acontecimentos memoráveis que irei guardar para toda a vida como o encontro fortuito com Cate Blanchett num corredor de hotel, em que mesmo com pressa nos sorriu e dirigiu a palavra com uma classe inegável. As conferências de imprensa foram também carregadas de situações muito sui generis como um jornalista ter pedido a Alexander Skarsgard para usar o colar do seu cão, ao pescoço, e tirar uma foto assim ao qual ele aceitou ou uma interjeição de Helen Mirren a uma pergunta sobre o facto de interpretar uma judia quando ela própria não o é ao qual respondeu – “O papel de Jesus eu não aceitaria”.
Com a próxima edição da Berlinale já marcada entre 15 e 25 de Fevereiro de 2024 há a promessa do seu director de programação em manter o espírito do festival vivo, durante o ano de preparação, e sempre fomentar a cultura de um cinema vivo, diverso e aberto a todas as visões do mundo e da nossa realidade. Esperamos, então ansiosamente para este ano passe depressa para podermos estar mais uma vez presentes numa das maiores celebrações do cinema mundial em Berlim. Também nós somos Berlim – Ich bin ein Berliner. Até para o ano que vem.
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