“E não nos deixei cair em tentação mas livrai-nos do mal” era a frase bíblica que ecoava na minha cabeça antes de entrar na sala do Nimas. O seu nome é sinónimo de desconforto e não está relacionado com a qualidade das cadeiras mas sim nas muitas sessões desta sala que me levaram ao limite como espetador. Lembro-me de, antes do confinamento, uma audiência a abarrotar no Nimas, a partilhar a vergonha da obra seminal de Cronenberg, Crash (1996). Agora, um último grito antes de entrar novamente em clausura e como era a segunda vez, já sabia o que implicava e o preço a pagar. A nossa liberdade.
O filme começa com a entrega de uma criança, Benedetta, num convento em tempos passados (Idade Média) quando as crianças eram entregues como forma de devoção ou vendidas e usadas como moeda de troca, para remissão dos pecados dos pais e para o pagamento de promessas. Sem realmente saber o que esperar na sua nova vida, rapidamente, Verhoeven demonstra o seu destino: o sofrimento da condição humana. Fomos criados para sofrer e Benedetta não é exceção no seu primeiro contacto com a vida de freira. Comunicação com a família é amputada e os objetos familiares retirados, ficando sozinha com o seu único consolo, o amor pela Virgem Maria, ainda sem sombra do pecado humano.
O conceito de pecado foi introduzido para descrever qualquer desobediência a Deus, ou das suas leis, como uma ofensa pessoal a Deus e ao seu amor; a sua repetição leva ao vício, à perversidade e nos inclinam para o mal. Desde os tempos antigos da religião que é usado com o intuito de educar os seguidores e de controlar os seus instintos básicos para, assim, se aproximarem de Deus. Não é, portanto, divino, mas criado por homens para controlar o Homem. Até aos dias de hoje mantém-se o medo de um castigo eterno às mãos do Diabo caso os nossos pecados sejam muito graves. O medo cria a vergonha e esta cria a culpa do que sentimos, desejamos e do nosso corpo. Vergonha acompanha o pecado, lado a lado com a culpa a segui-las bem de perto, assistido nas fábulas/sonhos de Benedetta (Virginie Efira) e nas suas ações no convento que habita.
O ponto de viragem do filme está na chegada de Bartolomea, com uma performance magnética de Daphne Patakia , sempre com um misto de inocência, desejo e desespero no olhar, sendo esta personagem o catalisador para Benedetta se tornar a escolhida ou A Noiva de Deus, como ela própria se intitula. Virginie Efira é o centro do filme e consegue capturar o olhar da audiência com a sua viagem que inicia na inocência e passa para um sofrimento sem explicação. Divino, portanto. O pecado mantém-se sempre presente neste convento com a inveja a surgir em quem não crê nos seus milagres, opondo-se à protagonista enquanto o povo adora Benedetta. A Abadessa Felicita, interpretada por Charlotte Rampling que aparece sempre em papéis de grande contenção, tem neste filme a sua oportunidade de brilhar como a principal opositora. Verhoeven gosta de atores e atribui importância até aos secundários no desenrolar da história. Lambert Wilson, como o núncio do Papa, é implacável, decadente e o verdadeiro exemplo de como a Igreja estava a pregar moralidade, sem moral, à população, através da cultura do medo. Independentemente do seu tempo no ecrã, Verhoeven trata todos os intervenientes como parte da história e não como adereço. Ainda assim, apesar de bem escrito, a direção de fotografia desaponta, sem nada de particularmente bonito para mostrar.
Não foi uma surpresa saber que o filme foi recebido como polémico, sendo acusado de blasfémia e heresia, com pedidos para ser retirado de exibição. A sua escolha para a competição em Cannes foi mais uma acha para a fogueira, mas quem vai ver Verhoeven já sabe ao que vai. É como pôr a mão no fogo e não esperar ser queimado. Os temas de religião e sexualidade são polémicos já por si e o realizador gosta do ato de provocar. É um filme desconfortável porque mostra o que está escondido e o que teima em ficar escondido, representando um ciclo vicioso da vergonha que cria culpa e que leva ao segredo, com sensibilidade. As cenas de sexo surgem de forma natural e nunca gratuitas, estando ao serviço da história e o desconforto nestes momentos é natural, principalmente numa sala de cinema cheia. Mas desconforto não é sinal de mau gosto, apenas das nossas limitações e receios.
Acredito, no entanto, que esconder realidades existentes é pior. Esta é uma longa-metragem baseada em factos reais; Benedetta existiu e a Igreja tentou ocultar e eliminar essa realidade. A história questiona se estaria Benedetta possuída por um demónio ou se seria mesmo a Noiva de Jesus? Estaria louca? Seria apenas uma mulher ambiciosa e que mentia para atingir os seus objetivos? Ao contrário do que é suposto, Verhoeven alimenta todas essas dúvidas no espetador com argumentos de ambos os lados e na conclusão desta narrativa cada pessoa terá a sua opinião. Numa citação do filme, Abadessa Felicita diz: “We don’t always understand the instruments God uses. Perhaps he put Benedetta in a trance or maybe God sent us a madwoman who spouts nonsense to serve his ends”. Isto é o que o argumento explora, liberdade de escolha.
No final é necessário algum tempo para processar as emoções, pois muitos dos temas como a vergonha, culpa, pecado, amor, sexo e religião sempre pertenceram à vida e todos estes se cruzam durante o filme, criando um emaranhado de sentimentos contraditórios. O pecado e culpa sendo os principais, que durante tanto tempo serviram como limitadores ou um travão ao que queremos e devemos sentir. Isto é, até descobrirmos que não é o pecado mas o amor que nos define. O sentimento mais indecifrável e mais explorado por artistas — da pintura à escrita.
Verhoeven não quer chocar. Benedetta não é um filme sobre homossexualidade, nem anti-religião ou um nunsploitation. É uma história sobre uma mulher, à frente do seu tempo, que se sentiu livre de explorar a sua sexualidade sem culpa ou vergonha em si. É um filme para ensinar à Igreja que o caminho não é o pecado mas o amor, e que esta não deve incutir o sentimento de culpa e medo nos seus fiéis para controlar ou ditar quem amamos. Já passaram quase 400 anos e muito pouco mudou desde esse tempo, mas Verhoeven abre os olhos a uma Igreja que continua a não querer ver e nós ganhamos um dos filmes do ano.