Bedevilled (2010)

de João Iria

A pressão de sobreviver num mundo predatório isola indivíduos num casulo de interesses próprios, distanciando estes de decisões que exigem consideração por desconhecidos, em prol do conforto pessoal. A ignorância transforma-se num método de sobrevivência e o sentido comunitário sente-se apagado por uma ácida doença metafórica que desfigura a forma humana. Essa doença sendo o vírus de uma sociedade patriarcal capitalista a restringir uma capital tecnológica com a criação de avanços superficiais para esconder os seus fracassos pestilentos, até se assemelhar a uma ilha isolada onde essa corrupção corre em liberdade. A ruína de um espaço que se recusa a procurar verdadeira mudança no seu interior, permite que as suas raízes se estendam por terras esquecidas.

Bedevilled é um filme situado em duas localizações: a capital da Coreia do Sul, Seul, e a ilha desolada, Mudo. Todavia, estes temas apontados são reconhecidos a um nível mundial. A estreia de Jang Cheol-soo na realização é numa história de abuso físico e mental, de isolamento social e da figura humana como uma ilha perdida, com uma intensidade profundamente desconfortável que, ao longo da década, garantiu o crescimento desta longa-metragem no olho do público, como uma das maiores surpresas do cinema de terror.

Hae-won (Ji Sung-won) é uma mulher exausta; cansada do seu trabalho e provocada por uma mentalidade competitiva que nega empatia perante outras pessoas. Uma apatia que carrega consigo para a sua vida privada, onde a sua existência é somente uma de observadora. Após sentir as consequências das suas inações, Hae-won viaja para a ilha que visitava na sua infância, com esperança de respirar fundo numas pequenas férias. Neste lugar, volta a conectar-se com uma amiga de infância, Kim Bok-nam (Seo Young-hee), uma mulher nativa desta ilha, cuja felicidade nesta reunião carrega consigo conotações assustadoras.

Entrar em detalhes narrativos danificaria a experiência inicial desta obra sul-coreana, pois a sua construção durante os primeiros dois atos está focada num build up emocionalmente aterrorizante, com elementos surpresa na própria direção do argumento. A sua exploração de uma sociedade retrógrada e os seus efeitos numa mulher, arrisca cair numa área de exploitation visual ou mesmo no género de terror do torture porn, exibindo decisões sensivelmente questionáveis que colocam a audiência numa posição desagradável mas necessária para o efeito final desta longa-metragem. São elementos manipulativos elaborados principalmente para esse efeito de desconforto e intensa indignação e repulsão, recompensados tragicamente no seu terceiro ato avassalador.

Ainda que as suas sequências de brutalidade aparentem uma crueldade na realização e o sangue escorrido disfarce a empatia inserida nestas personagens, Bedevilled mantém o seu ambiente diabólico navegando de forma estável em mares descontrolados, principalmente na direção deste elenco e na explosão dramática de Kim Bok-nam, cuja performance de Seo Young-hee sobressai como legitimamente brilhante, sendo uma das melhores atuações deste género, recompensada com diversos prémios, incluindo o de Melhor Atriz no Festival Fantasporto. Young-hee transporta a sua dor num olhar sereno e numa interpretação fisicamente corrosiva, como uma pessoa cujo sofrimento se transformou em eventos diários rotineiros a marcar num calendário.

A verdadeira tragédia desta longa-metragem está precisamente nesta personagem, que num momento lastimoso, revela a outra pessoa os seus desejos de fugir desta infelicidade, sem consciência que este infortúnio e tormento possivelmente continuará a persegui-la até ao seu novo destino. Os seus sonhos estão na possibilidade de uma vida melhor, que é suficiente para motivar a sua existência.

Bedevilled é uma tragédia de horror acerca dessa ínfima possibilidade guardada no coração. Tecnicamente assombrosa com uma banda sonora melancólica e numerosas imagens emocionalmente potentes, esta obra sobre a prisão de um mundo patriarca explora também uma componente fascinante que é a do espectador; colocando uma das personagens como a observadora/cúmplice de eventos penosos – semelhante ao público do filme – sempre no assento a testemunhar uma existência sinistra no ecrã que perdura perpetuamente. A sua apatia e indiferença perante esta desumanidade, comum na sociedade, apresenta uma verdade monstruosa: eventualmente, raiva e dor é tudo o que conhecemos. Quando os créditos finais surgem, a sua implicação é de uma realidade fatídica.

4/5
2 comentários
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2 comentários

Juliana Batalha 19 de Novembro, 2022 - 17:35

Estamos diante de uma história muito difícil, horrível. Tanta humilhação, maus-tratos. Muito doloroso.
E a impotência de não poder ajudar Kim Bok-nam? Foi um filme difícil… E causou-me muitos momentos de raiva. Deve ser visto, sem dúvida.

Irias 20 de Novembro, 2022 - 01:56

concordo, para mim este é mesmo dos filmes mais difíceis de ver no cinema, é uma tortura toda a impotência que sentimos como audiência e o prolongar do sofrimento desta personagem.

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