Bardo, Falsa Crónica de unas Cuantas Verdades (2022)

de Rafael Félix

A era da autorreflexão ganha mais um profeta. Alejandro G. Iñárritu, afastado das câmaras desde o suplicio que foi filmar The Revenant em 2015, volta ao México pela primeira vez desde Amores Perros (2000) numa meditação sobre estados intermédios de autoconsciência: familiares, culturais, nacionais e oníricos. Anteriormente titulado Limbo, a sétima longa-metragem de Iñarritu transformou-se em Bardo, sentindo que o título inicial remetia para uma tradição demasiado católica, referindo-se a recém-nascidos que morrem sem ser batizados, ficando presos num espaço entre o Céu e o Inferno; já Bardo, termo do budismo, toma um sentido mais vasto, um estado intermédio entre a morte e a ressurreição.

Iñárritu coloca parte de si mesmo em Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho), um celebrado jornalista e documentarista mexicano, que após anos imigrado em Los Angeles às custas de uma carreira a expor os crimes do capitalismo americano na sua terra natal, regressa ao México, apenas para se ver continuamente questionado se o tempo passado em solo norte-americano o teria tornado um instrumento do opressor em vez de uma arma para a libertação.

Também não deverá ser acaso que a palavra “bardo” invoque um contador de histórias, mitos e lendas através da música e da poesia nos salões nobres da antiguidade. Isto porque a segunda parte do seu título completo de Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades traz-nos uma mão cheia de vinhetas de realidade ambígua (ou inexistente), filmadas através das lentes extremamente amplas de Darius Khondji, para pintar um quadro sobre espíritos divididos e memórias turvas. Se a largura da tela não fosse suficiente para oferecer a Bardo um ambiente tão desligado da realidade, a ela adicionam-se sequências atrás de sequências imaginadas ou sonhadas, de aparições em programas de televisão onde a sua síndrome de impostor grita que será humilhado ou o parto do seu filho que preferiu ficar no ventre da mãe porque este mundo estava demasiado danificado para ele. Dá a ideia que Iñárritu achou por bem fazer uma versão de um filme de Fellini sob o efeito de LSD.

Existe um espírito cheio de culpa e dúvida em Bardo, e um artista por trás a tentar reconciliar-se com as escolhas que fez no passado. Vemos no seu centro um homem que se diz “sem-abrigo”, em que a capacidade de chamar “lar” aos Estados Unidos está dependente da sua tipologia de passaporte e o seu México tornou-se um estranho que capta de forma fria e admitidamente pretensiosa nos seus documentários; algo que também deverá pesar na mente de Iñárritu, que decidiu criar os seus filhos em Los Angeles, trabalhou em publicidade e demorou 20 anos a regressar ao México para fazer um filme.

Não é raro encontrarmos realizadores a usarem filmes para se reconciliarem consigo próprios, mas se há mérito a dar a Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades, é que este não serve necessariamente para vitimizar o seu criador. No meio de um conjunto de farsas, o realizador é grande parte das vezes honesto e bastante autoconsciente do seu percurso, dos seus erros e das falhas como ser humano: uma pessoa que se esqueceu de onde veio, para onde ia e com quem. Aquilo que começou como um jornalismo de intervenção transforma-se em instrumento de interesses e não de forma estranha a Silverio, assumindo que isto é mais uma admissão de culpa do que uma desculpabilização do homem atrás da câmara.

Mas não é só propósito artísticos que Iñárritu visita, e talvez seja esse o seu principal defeito, um defeito que ele próprio admite no filme, mas que não o isenta de o poder cometer aqui. Há uma insana falta de disciplina em Bardo, um filme, como a maioria dos seus anteriores, a roçar algumas vezes o presunçoso, e mesmo que pisque o olho e diga “eu sei que é, é pela piada”, não faltam vezes em que apetece agarrar nos ombros do realizador, abaná-lo com ligeira força e dizer “calma, Alejandro”. É verdade que se multiplica em cenas maravilhosas e profundas onde reflete sobre um filho perdido à nascença ou a relação com os pais, mas a miscelânea de momentos que aqui se sucedem, soltos e vagos como pretendidos, raramente aparenta ser coesa e facilmente divaga. Para se fazer uma estrutura tão solta como esta resultar, era necessário um controlo na montagem que Iñárritu, até hoje, tem sempre negligenciado, apesar da gigante beleza dos seus planos infinitos e das performances que tira dos seus atores.

Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades é sem dúvida um quadro interessante sobre a forma como Iñárritu se lembra do seu percurso familiar, profissional e cultural nas últimas décadas, mas é também uma experiência algo dolosa com as suas 2h40 de vastidão refletiva e um terceiro ato que visualmente faz lembrar Terrence Malick mas que narrativamente se torna uma saída demasiado fácil e limpa para coincidir com um filme que até então pelo menos tinha sido aventureiro o suficiente para não explicar o seu espírito incerto.

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