Barbie (2023)

de Bruno Sant'Anna

A filósofa Julia Kristeva afirma que um texto continua num processo de divisão de significados mesmo depois de finalizado e à venda, pois esse é uma costura de termos ideológicos, determinados pelo fator social. Duas pessoas com trajetórias similares podem compreender um produto de maneiras diferentes, e reinterpretá-lo com uma nova perspectiva depois de um certo tempo. Ou seja, a única constante da humanidade é a mudança. Parece absurdo começar um texto sobre Barbie a mencionar um conceito sobre semiótica e linguística, mas a obra da realizadora e argumentista Greta Gerwig é muito mais do que uma simples história sobre a boneca mais popular do mundo. É um conto de fadas profundo sobre questões de género, capitalismo decadente e crises existenciais causadas pela incansável busca do ser humano em ser perfeito, um conceito tão abstrato que está sempre a mudar.

Idealizada por Ruth Handler, Barbie é um fenómeno comercial desde o seu lançamento, em 1959, por ser um contraponto aos brinquedos disponíveis para as raparigas da época, sempre com formato de bebés e ligados à maternidade compulsória. A boneca representava uma mulher adulta, com diferentes modelos em profissões distintas. O inicio do filme, inclusive, é uma brilhante reencenação da cena inicial de 2001: A Space Odissey (1968), do mestre Stanley Kubrick, sobre essa transição no mercado infantojuvenil. Porém, não podemos esquecer que com a popularidade de um produto, o pensamento empresarial se torna mais importante do que o público. O movimento feminista teve novos desdobramentos e, assim, muitas mulheres questionaram o seu papel na sociedade. Sim, agora podem ter empregos, mas também serem exploradas enquanto os homens continuam a receber mais e a dominar o mercado de trabalho. Além disso, nem todas as pessoas conseguem ser magras, loiras, brancas e felizes como a Barbie, que começou a ser um símbolo da beleza padrão inalcançável e o modelo de vida impossível.

A boneca idealizada para representar o empoderamento feminino não conseguiu acompanhar as mudanças necessárias que o seu público alvo exigia. A empresa Mattel, responsável pela sua fabricação, até tentou se adaptar aos dias atuais ao criar versões da Barbie de todas as cores, tamanhos e atender o máximo possível ao público que queria se ver representado num produto que simbolizava a sua infância. Ainda assim, perdeu-se a conexão, como um cordão umbilical finalmente cortado.

O que é fantástico em Barbie é que Gerwig tem plena noção de todo esse histórico deste brinquedo e não o nega: ela torna esse histórico a força motriz do seu filme. O conflito principal desta longa-metragem ocorre quando a boneca, interpretada por Margot Robbie, sai do seu universo perfeito e se depara com o mundo real, com o machismo, a obsolescência, e onde até é chamada de fascista pela sua dona. O que a realizadora constrói é uma jornada de herói, em que evoca todas as qualidades da Barbie, mas, ao mesmo tempo, nos emancipa de tudo o que ela possa nos limitar. Lembra-nos que produtos são ideias que não morrem (como é dito no filme), mas nós, a audiência, também precisamos de mudar e amadurecer para encarar a sociedade.

Além de toda essa carga de significação, o filme consegue brilhar como uma obra extremamente divertida e deliciosa de se assistir. O design de personagens, produção e figurinos segue uma linha estética maximalista, com muito rosa, cores vibrantes e roupas espalhafatosas, mas é proposital para representar o absurdismo deste mundo perfeito da Barbie, em que acabamos por nos acostumar a toda a sua extravagância. Há também um cuidado minucioso para compor cada detalhe das cenas, englobando muitos elementos característicos da história comercial da boneca dentro da narrativa cinematográfica. Um momento que representa bem esta ideia é quando a personagem tira os sapatos de salto alto e continua na ponta dos pés, uma cena que não é apenas fanservice mas uma parte essencial da história.

Deixo ainda um destaque para a personagem do Ken, que é representado com uma maestria pelo actor Ryan Gosling. O arco da personagem é complexo, sombrio em alguns momentos, mas feito com tanto carinho e naturalidade que é impossível não gostar dele. Ken representa a fragilidade masculina de uma maneira reflexiva e divertida, mesmo quando se depara com a estrutura patriarcal do mundo real. Definitivamente um dos pontos altos de um filme cheio de qualidades.

Barbie é divertido, profundo e corajoso; conseguindo atingir um excelente equilíbrio entre leveza, extravagância e consciência social. Um filme que não tem medo de tocar na ferida de uma empresa bilionária para que o público possa ter uma nova compreensão sobre a boneca mais famosa do mundo. Um exercício de amadurecimento e de que tudo pode ser contestado e atualizado.

4.5/5
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[…] Leiam a crítica ao filme, escrita pelo Bruno Sant’Anna aqui. […]

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