Banzo (2024)

de Pedro Ginja

A palavra que dá titulo a este filme refere-se a um sentimento de melancolia, de saudade da nossa terra natal e era usado, nas colónias portuguesas, pelos escravos que eram trazidos da África Continental para as ilhas de São Tomé e Príncipe. Originada da palavra mbanza em quimbundo (que se traduz no português por “aldeia”), pode ainda ser considerado sinónimo do “mistério”, na altura sem cura, que hoje vulgarmente se chama de depressão.

Banzo, de Margarida Cardoso, leva-nos à ilha de São Tomé, no século XX, mais precisamente a uma roça onde a moeda de troca é o cacau. Afonso (Carloto Cotta) é um novo médico enviado de Lisboa para investigar uma misteriosa doença, de nome banzo, que afecta todos os trabalhadores da roça, levando-os à morte. Contando com a resistência do dono da plantação, Raimundo (Gonçalo Waddington), e das autoridades portuguesas da ilha, Afonso procura a todo o custo salvar a vida destes homens, mulheres e crianças.

A escravatura, um tema por si só pesado, adquire aqui um duplo significado pois nesta África colonial, para as autoridades, ela não existe. Encontra-se escondida e é tratada como um contrato de trabalho em que o indivíduo está nesta ilha de sua livre e espontânea vontade. O processo deste subterfúgio é explicado ao pormenor e não deixa margem para dúvidas nos dias de hoje. Para Portugal isto é especialmente constrangedor pois historicamente, foi um dos primeiros a mencionar a abolição da escravatura. É clara a intenção de Margarida Cardoso de pôr o dedo na ferida e de confrontar Portugal com os erros do seu, não tão distante, como se pensava, passado. O próprio banzo é visto como um empecilho em que as autoridades portuguesas procuram uma explicação plausível, quando a que está à frente dos seus olhos é ignorada.

Nada é dado de mão beijada ao espectador, mas sim mostrado de maneiras inesperadas como, por exemplo, através de monólogos dos doentes, na sua língua materna, e em que o médico Afonso mostra uma clara impotência para os compreender e ainda uma bem maior impossibilidade para arranjar a cura que os seus patrões clamam, alheios ao sofrimento dos seus “empregados”. São muitos os exemplos da ignorância e falta de empatia das pessoas retratadas, e a viagem, partilhada com o espectador, tem alguns momentos difíceis de suportar. Nunca de um modo gráfico mas sempre de uma enorme violência psicológica. Poderá ser acusado de alguma falta de ritmo em alguns momentos da narrativa, mas o impacto emocional nunca deixa de se fazer notar.

Afonso surge como o paladino dos seus doentes, o único colono que os procura compreender e os vê como iguais. As subtilezas imiscuem-se na criação das personagens, com a introdução de uma deficiência no caminhar de Afonso que o torna dependente da ajuda de terceiros, sejam serviçais ou patrões. Carloto Cotta é exímio a revelar-nos essa fragilidade através do olhar ou no modo como o argumento cruelmente o faz chegar sempre ligeiramente tarde a situações em que a sua presença poderia fazer a diferença. A crueldade dos colonizadores está a cargo de Gonçalo Waddington que infunde o seu Raimundo com um misto de delicadeza com a esposa e os amigos, e a agressão verbal constante no seu trato com os escravos e os trabalhadores da roça. O sentimento de superioridade é claro no seu caso, mas é bem mais duro de ver a indiferença da sua esposa perante o sofrimento da sua empregada doméstica, Guilhermina (Cirila Bossuet).

O elenco africano surge sempre de semblante carregado, no horizonte e em segundo plano. Não no sentido de lhes tirar a importância mas de destacar o desrespeito com que é tratado. O seu passo é pesado e sempre de costas para o espectador, lembrando-nos como tantos, na altura, lhes viraram as costas. A escolha por uma interpretação mais naturalista, de atores não profissionais, pode revelar alguma inexperiência dos mesmos mas o sentimento dos seus antepassados permeia os olhares, muitas vezes para a câmara, outras para o chão, que não reconhecem nesta terra estranha e distante.

A forma como o diretor de fotografia Leandro Ferrão filma a luxuriante paisagem florestal de São Tomé, e a contrasta com os austeros edifícios coloniais, cria um ambiente quase extraterrestre, de algo que não pertence a este mundo. A rejeição do local não se reduz aos escravos, numa terra estranha à sua, mas a própria natureza resiste e absorve a construção humana, parecendo, também ela, inevitavelmente caminhar para a destruição. Os próprios interiores da casa senhorial, luminosos e alvos, contrastam com a escuridão da enfermaria e das fábricas, criando uma relação inequívoca entre a felicidade de uns e a desgraça de outros.

Muito mais haveria a dizer e a analisar deste complexo argumento de Margarida Cardoso, mas Banzo não se contenta com respostas fáceis. É um intrincado tratado sobre a escravatura, dos pecados coloniais portugueses e, acima de tudo, uma homenagem aos muitos anónimos que perderam a vida nesta ilha de São Tomé e Príncipe. O ritmo lento e a procura constante do sofrimento na narrativa poderá afastar alguns espectadores, mas não há como negar a devastação emocional causada e a impotência que também nós sentimos nesta viagem cinematográfica. Somos Raimundo ou Afonso nas nossas vidas? Somos parte de um passado bolorento e decadente ou de um futuro de luz, integração e compreensão? Pensamentos que ficam para o presente, bem para além do fim da sua projecção.

4/5
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