A avalanche de filmes que tem invadido as salas com histórias de amores e desamores com o grande ecrã é um caso de estudo. É como se coletivamente, todos tenham sido levados a refletir sobre a sua própria relação com a câmara e a projeção, seja pela nostalgia por um tempo diferente, seja pelas premonições catastróficas que têm recaído sobre o futuro do cinema como o conhecemos. Só nos últimos meses tivemos The Fabelmans (2022), Empire of Light (2022) e este mastodonte caótico que é o regresso a Hollywood de Damien Chazelle, 6 anos depois da última dança de Mia e Sebastian no mágico La La Land (2016)
Os filmes estão umbilicalmente ligados, são dois lados diferentes, mas parte do mesmo todo. Com um elenco de luxo composto por Margot Robbie, Brad Pitt, Jean Smart, Tobey Maguire, Li Jun Li e o desconhecido, e absolutamente brilhante, Diego Calva, Chazelle e Babylon levam-nos pelo frenesim alimentado a cocaína, sexo e sonhos da cidade de Los Angeles nos anos 20’, o período que marcava a transição do cinema mudo para os talkies, o momento em que tudo mudou em Hollywood.
A escolha do período a abordar é interessante por várias razões. Este parece misturar elementos de Sunset Blvd. (1950) e Singin’ in the Rain (1952) com uma boa dose da boémia vida de Fellini, a adrenalina de Goodfellas (1990) e uma relação espiritual com La La Land. Mas apesar de usar as suas influências quase descaradamente, como quando as primeiras palavras de Jack Conrad (as iniciais JC apontam para o mítico das estrelas), fazem lembrar um italiano pouco fiável a tentar pronunciar “Gorlami” já no distante ano de 2009, Babylon é o seu próprio filme. O caos, o orgasmo e a música que deliciam e chocam nos primeiros 30 minutos que passamos na festa grotesca de um produtor de Hollywood, com direito a um cardápio completo de estupefacientes, grandes estrelas de cinema, aspirantes a astros e um elefante, são substituídas pela folia e paixão contagiante, e algo bélica, que se vivia nos sets em pleno deserto, com múltiplos filmes a serem feitos no mesmo espaço, com figurantes em fúria, atores alcoolizados e realizadores excêntricos e instáveis.
Excesso é a palavra de ordem nos primeiros movimentos de Babylon, o êxtase do holofote, o ruído e a gritaria atrás do cinema que se dizia mudo, os sonhos de fama concretizados com um misto de sorte, talento natural e destino. Mas daí vem o som. A música e a vida que vinham dos cenários, foram transformados em caixões à prova de som, onde nem todos conseguiam escavar de volta ao céu de onde tinham caído.
Jack Conrad e Nellie LaRoy, são o arquétipo das estrelas que os talkies invalidou, mas levam-nos a sítios diferentes.
Ele, a maior estrela de um estúdio, ator de calibre e renome, galã e homem de excessos, abre portas à expectativa de um artista perdido nos seus vícios e ausente de profissionalismo. A verdade é que a escolha de Brad Pitt revela-se quando este consegue trazer a um personagem que já vimos antes, uma estranha humildade e paixão pelo que faz, uma nobreza estranha para com o público em alguém que está a um copo de champanhe de se tornar megalomaníaco. O crédito a dar a Chazelle é imenso pelo casting, mas aquilo que Pitt traz a este papel, num jogo duplo de estrela a interpretar uma estrela, é uma nuance entre a paródia e a resignação que não custa dizer que Babylon estará entre os seus melhores trabalhos. Noutras mãos Jack Conrad seria um bêbado, nas dele, é um astro para quem perpetuidade na História não chega.
É um equilíbrio interessante quando equiparado ao que é pedido a Robbie. Ela, uma estrela, com uma subida quase tão rápida como a sua queda, devorada pelo som e pela transformação de um mundo que ela tornou seu por um período tão breve, mas tão viciante. Ela é a personificação da validação do público e a destruição pelo mesmo, é uma mulher que viveu no brilho do foco e agora vê-se sem chão. É um encontro com a fragilidade por trás da vitalidade mostrada em câmara e esta Nellie LaRoy é absolutamente inebriante na sua dança, mas uma tragédia à espera de acontecer. Mais uma sensibilidade brilhante de Chazelle que conseguiu fazer com que uma personagem feminina no meio de um filme que tresanda a sexo, nunca parece ser sexualizada pelo filme, apenas por quem o habita.
Estes dois furacões giram à volta de Manny. Imigrante mexicano com sonhos em Hollywood que começam na overdose de uma jovem na festa do elefante e que ganham forma na transição para o mundo do som. A vida construída com trabalho e uma mão cheia de sorte é a história do underdog a ganhar vida, mas com um preço a pagar. É em Manny que vemos a destruição do espírito para dar lugar à estrela, o apagar da herança em prol da integração num mundo onde tudo te pode ser tirado num lapso de língua. Manny é a paixão pelo cinema, pela película e pela luz, esquecida por entre o excesso, os orçamentos e as críticas. Mitigam-se os valores morais e os sonhos de imortalização no breve êxtase da fama imediata. O olhar que Diego Calva lança tantas vezes durante Babylon é de um assombro e maravilha constante, seja pelo beijo do herói triunfante a ser registado na câmara diante de si, ou o sorriso sincero e jovial de LaRoy, os olhos de Calva são os nossos.
São o encanto pelo manegar ágil da câmara de Linus Sandgren que vira, contrai e voa por entre a música embriagante (novamente) de Justin Hurwitz, que cimenta a teoria que ele e Chazelle são a dupla mais virtuosa a esculpir filme e banda sonora num par inseparável enquanto se estendem pelos cenários cheios de anos 20’ de Florencia Martin.
Babylon é um musical sem ser um musical, é uma odisseia pela História (e pelas histórias) de uma era distante, que segue a batuta acelerada de um dos realizadores mais talentosos do cinema moderno que sprinta pela folia inigualável de Hollywood do ínicio do século XX, mas que tem muito mais no seu interior do que pessoas bonitas em cenários rocambolescos. É também demasiado simplista chamar-lhe uma carta de amor a LA, como erradamente se fez com La La Land. Mostra, em vez disso, um fascínio caleidoscópico pelo cinema e pela estrela de cinema e a sua vivência além da mortalidade, e se deixa explicito que o preço a pagar pela eternidade é elevado, nunca cessa de nos fazer sentir que vale a pena.
2 comentários
[…] é mais uma adição ao subgénero de cartas de amor para o cinema, como Cinema Paradiso (1988) e Babylon (2022), sobre Hilary Small (Olivia Colman), uma mulher de meia-idade que trabalha no cinema […]
[…] Babylon […]