Leonor Teles tem um desejo, como a própria diz, de nunca se repetir. Nos seus projectos vemos temáticas e maneiras de fazer cinema sempre diferentes que granjearam a Leonor Teles a atenção e respeito da crítica. Há uma clara reverência ao seu trabalho nos festivais de cinema desse mundo fora, com constantes nomeações e um leão de ouro de Berlim para a sua curta-metragem Balada de um Batráquio (2016) mas, injustamente, continua uma perfeita desconhecida para o público português.
Baan pretende mudar esse paradigma com a história de L (Carolina Miragaia) em plena espiral de depressão dentro de uma rotina profissional e pessoal. Um dia conhece K (Meghna Lall) e logo nasce uma atracção mútua. A sua visão de Lisboa como casa ganha um novo significado com a chegada de K. Mas irá este sentimento manter-se no tempo? Será K a casa que L procura?
Parece ser uma simples história de amor entre duas pessoas no burburinho de uma Lisboa cosmopolita, mas muitas outras interpelações parecem surgir do seu interior. L é o nome da personagem principal interpretada por Carolina Miragaia, que deambula pelas ruas de Lisboa e Banguecoque, alternadamente. Nunca se sabe exatamente em que cidade estamos, e Leonor Teles parece querer essa dúvida a pairar no ar. O conceito de casa e o que significa é algo que ecoa no argumento e muito das suas interrogações prendem-se na discussão se é um lugar específico feito de betão, tijolos ou madeira, se é um país/cidade ou se é uma pessoa. Há aqui um claro desejo de interpelar o espectador a ver a sua verdade sem indicar caminhos. A resposta correcta nunca é clara e o próprio argumento saltita entre as várias hipóteses referidas. Ou interroga-se mesmo se não poderão ser todas em simultâneo, como uma espécie de utopia.
Por vezes parece tratar-se de um sonho em que o tempo não segue as regras naturais de linearidade e a mente divaga pelo tempo e espaço, como aquelas ideias que não nos saem da cabeça. Quem nunca sonhou acordado a recordar aquelas férias magníficas ou aquele pôr-do-sol com cores quase irreais que irrompeu um dia e tornou um momento instantâneo numa memória para a vida? É esse sentimento que transparece, de um momento especial da realizadora, quando ela própria percorreu as ruas da capital da Tailândia, e que a parece seguir no tempo e no espaço. Confuso, porventura mas não é disso que os sonhos são feitos? De um reviver de memórias passadas para conseguir viver num presente difícil, e que acaba por ser a solução encontrada por L para sobreviver. Para o espectador parece ficar um sentimento de confusão e incerteza, mas também de familiaridade e compreensão sobre o conceito de casa, algo tão único para cada um de nós. Ainda hoje enquanto escrevo estas palavras me interrogo sobre as dúvidas levantadas pelo filme. Onde está a minha casa? Já a encontrei? É algo passageiro ou imutável no tempo e no espaço? É esta reflexão pessoal o seu melhor presente pós-visionamento.
Nem tudo é imaterial ou deixado em aberto, principalmente nas influências que revestem a inspiração visual e sonora de que Leonor Teles pretende partilhar em Baan. Há claras inspirações asiáticas na maneira como a realizadora entrelaça a música e a banda sonora na construção do argumento e do sentimento de imersão. Por vezes é mesmo a escolha musical que parece “enganar” o espectador sobre onde estão as personagens, seja no tempo ou no espaço com músicas tailandesas misturadas com pimba, ou grandes êxitos pop dos anos ’80 misturados com tecno. Tudo parece encaixar e tornar a história mais parte do universo de quem observa de fora, principalmente de quem também tem o cinema asiático como referência. Vejo Carolina Miragaia, como L, qual Brigitte Lin, a misteriosa mulher loira de Chungking Express (1994) de Wong Kar Wai, a percorrer as ruas de uma Lisboa etérea e de sonho e na qual só ela parece existir. Ou talvez L seja Shun Qi, a Vicky de Millenium Mambo (2001) do grande Hou Hsiao-Hsien enquanto atravessa um túnel em busca da luz no seu final.
A cinematografia é indissociável da música e bebe das mesmas influências com um abuso de luzes néon, no uso de uma paleta de cores centrada no azul e roxo, e em que os tons frios dominam os ambientes noturnos. Entra, durante o dia, numa pletora de cores fortes e esbatidas para contrastar com os mundos tão diferentes em que L se move. O uso de película de 16 mm dá uma intemporalidade e um charme difícil de negar ao filme. A própria opção de usar câmara de mão torna os planos tremidos (algo particularmente irritante para este crítico) mas também umintímo e próximo de quem o observa, tornando-nos cúmplices e parte da história de Leonor Teles. E é inegável a inteligência visual de uma realizadora que é também uma brilhante directora de fotografia. Basta lembrar o seu excelente trabalho, nessa função, no díptico Mal Viver/Viver Mal (2023) para saber que os planos tremidos não são um acidente, mas fruto de uma opção consciente e de muito bom gosto.
Carolina Miragaia actua como uma extensão da própria realizadora, com a qual partilha semelhanças físicas mais que óbvias. Carolina espelha essa sensação de incerteza e de uma pessoa em construção, incerta do caminho a seguir. Há uma escolha por uma interpretação natural e despida de artifícios, com uma subtileza de louvar, mas com laivos de overacting nos momentos mais dramáticos. Meghna Lall, como K, sempre presente em espírito mas pouco como uma personagem de carne e osso. Mantém-se como um sonho, perfeito e intocável. Meghna cumpre nesse propósito e apesar do seu momento de redenção, sabe a pouco.
O maior ponto de contenção da história é o desequilíbrio óbvio nos diálogos, ora inteligentes em certas ocasiões, ora desinspirados noutras. Entende-se a necessidade de mostrar a rotina profissional de L, mas a automatização e formalidade dos diálogos nessa parte da história acaba por diminuir o sentido onírico e poético do restante argumento. Referência final para o cuidado em mostrar como a diferença cultural em Lisboa é um tesouro que nos aproxima de quem parece diferente de nós – parece haver Banguecoque em Lisboa na mesma proporção em que há Lisboa em Banguecoque. Um sentimento deveras bonito.
Baan é uma carta de amor de Leonor Teles ao cinema asiático do virar do século e à multiculturalidade Lisboeta do presente, e que parece encontrar neste filme um ponto de encontro no espaço e no tempo. Mais do que uma história de amor entre dois seres que se complementam, é uma reflexão profunda sobre o conceito de casa na sua infinitude de significados e sentimentos.