No final dos anos 90, o terror de Hollywood era dominado por slashers e meta-filmes seguidos do sucesso Scream (1996). Audition fez parte de uma onda de filmes japoneses que desafiaram esta tendência, como Cure (1997) e Ringu (1998), ao explorar medos subliminares e desconcertando o público através de temas psicológicos. Com filmes como Ichi the Killer (2001) e One Missed Call (2003), Miike tornou-se uma figura de destaque no J-horror, contudo, foi Audition que lhe garantiu reconhecimento internacional.
Adaptado do livro de 1997, de Ryu Murakami, o filme segue Shigeharu Aoyama (Ryo Ishibashi), um homem viúvo em busca de uma nova mulher após a sua ter morrido de cancro, sete anos antes. O filho adolescente, Shigehiko Aoyama (Tetsu Sawaki), diz ao pai que ele parece desanimado e se deveria casar novamente. Consequentemente, o seu amigo e produtor de filmes, Yasuhisa Yoshikawa (Jun Kunimura), sugere encenar uma audição para dezenas de mulheres para um filme falso, com o intuito de conhecer a perfeita para Aoyama ter como esposa. Ele sente-se imediatamente atraído pela beleza e delicadeza da ex-bailarina Asami Yamazaki (Eihi Shiina), que é exatamente o tipo de mulher que procura – bonita, elegante e obediente – contudo, às vezes, nem tudo o que parece é.
Audition é um daqueles filmes que muda de ritmo e género sem aviso prévio, criando uma experiência de visualização muito emocionante e intensa. O que começa quase como um drama ou uma comédia romântica, um slice of life da vida de Aoyama e do filho, lentamente se transforma num fever dream e num gigantesco delírio até culminar num desfecho inevitavelmente trágico. Takashi Miike é conhecido por puxar os limites nas suas obras, com imagens muito idiossincráticas e perturbadoras. Contudo, em Audition, faz algo ligeiramente diferente, levando o seu tempo primeiro para ressaltar temas profundos e deixar espaço para alguma introspeção demorada, antes de encerrar com o desastre. Aliado a este ponto, a mudança repentina de ritmo cria uma justaposição clara entre a vida “pública” de Asami e como Aoyama a vê, e a sua vida privada e como ela de facto é.
O próprio estilo visual do filme muda, acompanhando a transição da narrativa. A primeira parte de Audition é composta por cores suaves, long shots estáveis e nivelados e uma iluminação natural, numa altura serena em que tudo parece relativamente normal. Numa segunda parte, substitui-se este sossego por movimentos de câmara repentinos e bruscos, que fazem lembrar um found footage, alucinantes tons de vermelho e azul e imagens sinistras que contribuem para a recente violência instalada.
É crucial mencionar a cena da audição, que por si só é perturbadora, pelo quão normal aparenta ser. Nenhuma mulher se opõe às questões feitas por Yasuhisa, incluindo o facto de uma delas estar casualmente apenas de bikini. A montage scene da audição é planificada como uma cena de uma rom com, num tom feliz e engraçado, acompanhada de uma música que parece vinda de uma loja de conveniência, que mascara o que de facto ali se passa – dezenas de mulheres seguidas umas das outras a serem enganadas e objetificadas, a atuarem para dois homens como se estivessem num circo. A persistência em procurar e ter uma mulher é um ponto central do filme, as mulheres são vistas como um meio para o fim que é a satisfação dos homens.
Ayoama é um personagem interessante, pelo que não é insolente para com as mulheres por ser um “monstro” ou uma pessoa necessariamente má. Ele é-o por existir num mundo patriarcal, dominado por homens; a maneira de ser de Ayoama é esta porque ele cresceu numa sociedade que sempre foi assim, nunca entendendo a capacidade da sua ignorância no assunto. A verdade crua é que ele amou genuinamente a mulher e valoriza a família, sendo, no entanto, constantemente assombrado por uma tremenda sensação de culpa por desejar uma relação superficial com Asami e querer subjugá-la desta forma.
É uma pena parecer que o filme é conhecido apenas pelo horror dos seus minutos finais, visto que o verdadeiro medo não recai somente neles, mas a partir do momento em que se percebe que a situação não é tão normal como tem aparentado ser; quando o ritmo muda drasticamente, no sonho – ou pesadelo – febril quase Lynchiano mostrado a partir do meio do filme, tão desorientador que se começa a perder o contacto com a realidade das personagens. Audition não se revela como uma obra aterrorizante apenas no fim, já que o filme joga sempre com o terror, mas é mais difícil de o ver porque já estamos habituados a ele.
A qualidade do filme vai além da sua estética inquietante, das excelentes atuações e do terror físico. Audition sobressai porque permite um debate e uma contemplação intrigante sobre as suas temáticas. Ser um filme feminista ou misógino depende da perspetiva pela qual se observa a história, depende de como se interpreta Ayoama e Asami como personagens. Não só discute dinâmicas de género, como, nas palavras do próprio Miike, explora a forma como uma mente e corpo abusados funcionam e pensam, questiona quão longe alguém obcecado e mentalmente perturbado está disposto a ir para se vingar. Estabelece, no contexto de Audition, como a linha que separa obsessão e tortura de amor pode ser ténue para uma pessoa tão destabilizada e traumatizada, e as consequências que isso acarreta.