Eu quero viver no mundo de Koreeda. Admitidamente, uma afirmação confusa quando presenciamos as conclusões soturnas das suas obras. Contudo, o cineasta japonês tem uma capacidade mágica de criar uma aura reconfortante nos seus universos dolorosos, despertando esta ansiedade de pertencer às suas famílias; aliás são estas personagens, estas “famílias” e as suas conexões emocionais e físicas que estabelecem este ambiente morno, típico de uma Kotatsu. As suas narrativas replicam perfeitamente a sensação de chegar a casa, após um longo e cansativo dia de trabalho, prontos para acompanhar as nossas pessoas amadas numa refeição deliciosa e numa conversa caótica, repleta de gargalhadas e uma intimidade única, apenas sentida entre quem nos conhece plenamente. Sabe bem. Sabe verdadeiramente bem. Suficiente para esquecermo-nos da dor que guardamos dentro de nós; suficiente para esquecer que a dor não desaparece.
Asura, a sua nova minissérie da Netflix, confronta imediatamente esta dor na sua introdução, quando 4 irmãs se reúnem secretamente para discutir o caso de infidelidade do seu pai, uma descoberta que abre portas para segredos pessoais revelados, a colisão de perspectivas opostas e um impulso por descobrir mais acerca destas sombras genealógicas, particularmente perante as suspeitas de um desconhecido irmão. Tsunako (Rie Miyazawa) – a mais velha – é uma artista de Ikebana viúva que vivencia o seu próprio caso amoroso com o seu patrão casado; Makiko (Machiko Ono) – a segunda irmã – é uma dona de casa numa suposta rotina estável, com dois filhos adolescentes, que suspeita do seu marido; Takiko (Yû Aoi) – a terceira irmã – é uma bibliotecária solteira, inteligente mas perdida nas suas inseguranças, que incita esta investigação; e, finalmente, Sakiko (Suzu Hirose) – a mais nova – é uma jovem aventureira e extrovertida numa relação financeiramente desafortunada com um pugilista a lutar por um sucesso inexistente.
As reações diferem entre as irmãs, conforme as suas próprias experiências individuais, abrangendo o medo, a raiva e até uma atitude defensiva, enquanto procuram delinear o próximo passo nesta situação. O conflito da série reside precisamente na forma como cada uma decide seguir o seu caminho após esta descoberta; o que esta desencadeia existencialmente em cada mulher; como as suas vidas mudam (ou não) face esta divulgação e a força emocional que encontram na sua irmandade.
Esta adaptação do romance de Mukoda Kuniko, situada em 1979, explora as convenções sociais femininas e masculinas desta década, com a empatia delicada recorrente de Hirokazu Koreeda. Asura coloca diversas questões no centro da sua história, uma delas exibida numa carta enigmática publicada num jornal durante o segundo episódio: “Viver sem levantar ondas é como as mulheres se mantêm felizes?”. Os fantásticos créditos iniciais (necessário mencionar a excelente banda sonora) despelam esta pergunta com cada irmã a libertar um grito feroz e a atirar um objecto, simbólico das suas frustrações e tormentos, para os homens das suas vidas, determinando o tema principal desta minissérie: a revolta feminina.
Num Japão conservador com regras de etiqueta misóginas, testemunhamos uma família a desvendar as frágeis ligações amorosas com os seus respectivos amados. É uma opening que proporciona a empatia negada a estas protagonistas, exigindo o respeito e o amor que merecem. No seu mundo, estas mulheres conservam as suas mágoas nos seus corações, à espera que encham de tanta tristeza que inevitavelmente rebentem. É uma dúvida existencial pertinente que acompanha as suas jornadas numa agonia silente. O seu súbito final esperançoso corta os laços com o passado e recorda que os tempos apenas mudam se as pessoas lutarem por essa mudança. Nenhuma mulher deve sofrer em silêncio. Nenhuma mulher deve ser afogada na sua maré. “Os homens passam por muito”, comenta o marido de Makiko. “Não tanto como as mulheres”, responde a segunda irmã.
Koreeda expressa consciência do estado político de género desta época, consistentemente honesto na sua direção e no seu retrato deste ambiente, mas combate correntemente pelas suas protagonistas, apelando, subtilmente, ao poder do olhar do seu público. A sua identidade visual, similar a uma peça de teatro, um bunraku, onde o palco é dominado por uma profunda intimidade, define uma conexão dramática entre narrativa e audiência. A direção de fotografia de Mikiya Takimoto aproxima-se suavemente desta irmandade, inicialmente voyeurístico para o espectador sentir-se infiltrado – escondido a observar impotentemente –, até eventualmente transformar os seus formidáveis aconchegantes cenários num lar com uma porta aberta. São imagens que debatem a possibilidade de sermos somente meros observadores distantes frente a uma atmosfera familiar privada.
A família Katsumata impacta as nossas vidas e até suscita pensamentos confidenciais para os holofotes. O nosso assento fica indicado no palco. Para Koreeda, é impossível sermos apenas testemunhas desprovidas de ligações com os sujeitos que observamos. A partir do momento em que olhamos para alguém desconhecido num instante de vulnerabilidade é fundada consecutivamente uma conexão íntima. Aliás, no seu argumento, pecados caseiros são transmitidos de pais para filhas através do mero acto de observação, invés de sangue. Os frames de Asura são comparáveis a um álbum de fotografias, sentimos a sua textura juntamente com o seu peso emocional, e somos transportados para as nossas próprias memórias em 35mm. Naturalmente, esta afinidade sentimental provêm paralelamente da realização como da deslumbrante dinâmica entre o elenco. As melhores atuações do ano estão já asseguradas em Asura. Estas actrizes representam com uma química e uma naturalidade praticamente impossível de replicar, e convertem brilhantemente as suas personagens em seres humanos que existem além do ecrã.
No seu segundo acto, Asura oferece um mood retrospectivo ao citar um poema japonês que examina a vida entre a comédia e a tragédia. As fotografias das irmãs em dupla exposição exibidas nos créditos finais, os caracteres de Kanji com duplos e múltiplos significados, e o próprio desenrolar desta história segue justamente esta lógica espiritual. Uma tragédia causa uma futura gargalhada. Uma piada despoleta lágrimas. Durante os 7 episódios desta minissérie, visões são moldadas e acontecimentos recontextualizados.
Assim é Asura. Nada nesta vida é uma única coisa. Diante a tragédia, a comédia permanece connosco. Perante o caos, a melancolia e a tristeza, continuamos a querer partilhar risos com estas irmãs, participar nas suas rotinas e desfrutar das suas refeições. Continuamos a querer viver no seu mundo. É curioso porque Hirokazu Koreeda nunca se abstém de demonstrar a crueldade trágica da sua sociedade. É exactamente igual à nossa. Ainda assim, o seu universo permanece reconfortante. São as suas personagens que se sentem reais, tangíveis e próximas, como membros da nossa família, que fornecem esse conforto especial que ansiamos por obter nas nossas respectivas vidas. São as suas personagens que evocam uma contemplação empática da nossa realidade, disputando pelo amor e respeito que todos merecem. Essa é a sua magia. Koreeda parece acreditar sempre mais nas pessoas do que no mundo que criaram.