Vivemos numa era de trends nas redes sociais e uma das mais recentes é Wes Anderson. Se procurarem, em qualquer plataforma digital, milhares de micro-curtas surgirão onde Wes Anderson é utilizado como punchline. O tema não é importante, havendo tópicos para todos os gostos, mas sim a maneira como Anderson realiza os seus projectos. Abunda, por isso, a simetria de planos, a ausência de expressão facial, os reflexos em espelhos ou vidros, os planos estáticos com breves movimentos para mostrar um pormenor, a atenção ao detalhe e uma explosão de cores. Essa obsessão pelo seu imaginário acabou por chegar aos seus ouvidos, com o constante envio de filmes para recolher a opinião do mestre. Wes Anderson já admitiu a sua recusa em ver estas visões do seu trabalho por uma simples razão: “(…) tenho receio se entrar nesse mundo de me perder e começar a imitar-me.”. Será este o início do multiverso segundo Wes Anderson?
Asteroid City é a sua 11ª longa-metragem, e nela reflecte sobre o processo criativo como motor da narrativa visual que caracteriza o seu estilo desde The Royal Tenenbaums (2001). Enquanto esse processo deambula por uma infinitude de localizações, centradas no backstage de um teatro, a sua concretização decorre numa cidade ficcional de nome Asteroid City em plena década de 50′, durante uma convenção de observadores de estrelas. Augie Steenbeck (Jason Schwartzman) é abalado por uma tragédia familiar e luta por dar um novo sentido à sua vida até que um acontecimento extraordinário muda a sua maneira de ver o mundo. Realidade ou ficção? Essa é a questão, aparentemente.
Dois universos parecem colidir neste argumento em que o processo criativo entra em choque com a execução cinematográfica do projecto criado. Duas histórias em simultâneo, a criação da peça e a própria peça. Wes Anderson parece brincar com a sua própria visão da vida e saltita entre ambos. O processo criativo (realidade) adquire o impacto do preto e branco enquanto a execução (ficção) adquire uma infinidade de cores características do seu estilo visual. Inclusive, existe a mudança de formato de 4:3, durante o processo criativo a preto e branco, enquanto a execução da peça de teatro surge num majestoso 16:9 em que Wes Anderson parece “gritar” que a ficção é mais colorida e preenchida que a realidade.
No processo criativo reflecte-se e questiona-se, na pessoa do criador da peça Conrad Earp (Edward Norton), tudo o que está por detrás de cada escolha criativa. Parece uma janela para a mente de Wes Anderson onde se estabelecem os seus receios e dúvidas nas escolhas tomadas. Um processo que acaba por estender, em toda a sua complexidade, para a realização e a produção, com a adição de Schubert Green (Adrien Brody), director da peça, e Saltzburg Keitel (Willem Dafoe), professor de representação, no desenvolvimento de personagens. Este trio personifica Wes Anderson na sua multitude criativa e é-nos apresentado, como se de um making-of se tratasse, tornando-o ainda mais delicioso e particularmente inspirado. A constante quebra da estrutura do argumento acaba por contaminar o espectador, que reflecte com Anderson e “entra” na sua cabeça como se fosse a primeira vez.
Em Asteroid City estamos em território familiar com um trabalho de fotografia e cenografia de excelência. Ninguém filma com este nível de pormenor, em que tudo é pensado até ao milímetro, desde a cor dominada por tons pastel, os subtis movimentos de câmara e a meticulosa construção de cada plano do filme. Como se isso não bastasse, Asteroid City aposta forte na fotografia a preto e branco, já ensaiada com sucesso no The French Dispatch (2021), e que aqui ganha um destaque evidente, na constante “luta” entre luz e sombra e com o uso e abuso de focos de luz como elementos centrais. Essa obsessão de Wes Anderson na perfeita simetria/centralidade só é possível devido a Robert Yeoman, o responsável pela fotografia dos filmes de Anderson desde 2001. A banda sonora de Alexander Desplat e o conjunto de músicas escolhidas refletem esta dicotomia presente nos mundos apresentados, misturando classicismo, retro sci-fi e o imaginário cowboy da década de 50′. E terminar com um original de Jarvis Cocker é a cereja no topo do bolo.
É uma tarefa ingrata destacar alguém neste elenco extraordinário, mas Jason Schwartzman e Scarlett Johansson são as escolhas óbvias. Schwartzman é Augie Steenbeck, fotógrafo, e Johansson é Midge Campbell, actriz, e é no seu encontro e diálogos que estão as mais bonitas reflexões sobre a fugacidade da vida. O estilo deadpan mantêm-se característico ao mundo de Anderson, mas é aqui ampliado com alguns momentos emocionais entre Midge e Augie, a surgirem sempre de frente um para o outro – olhos nos olhos. Essa intensidade, como não existe nas expressões, materializa-se nas inflexões da voz, no vigor do olhar ou na qualidade exepcional dos diálogos entre ambos. De realçar o regresso de Wes Anderson a um registo mais cómico, a que não é alheio a presença de actores dotados dessa faceta como Tom Hanks, Steve Carell e Tilda Swinton, constantemente a roubar cenas e a conseguir as melhores gargalhadas do espectador. Outros são surpresas agradáveis como Maya Hawke e Rupert Friend, ao conseguirem transformar a tensão/ansiedade entre ambos num misto de comédia e fofura.
O multiverso criado por Wes Anderson continua a ser um lugar apetecível para muitos (este crítico incluído) mas nunca o será para todos. Asteroid City é, de longe, o seu projecto mais ambicioso (e pessoal) ao colocar na tela os seus medos sobre o processo criativo e o sentido da vida. Profundo, cómico, emocional – blafésmia eu sei – e com uma infinidade de leituras e talento difícil de igualar. Pelo menos, até estrear o próximo filme de Anderson. Reservo, desde já, um lote no multiverso Anderson, seja ele a cores, a preto e branco ou às bolinhas cor-de-rosa.
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