Perante o isolamento social, durante a pandemia do Covid-19, uma conversa desapontante despoletou com uma (antiga) amiga próxima. Esta, familiar com o meu sonho de escrever e realizar obras audiovisuais, sentiu a necessidade de apontar que a produção de arte pertencia a um dos diversos trabalhos não-essenciais na atualidade. Antes sequer de atingir a conclusão da sua opinião, esta pessoa resumiu a sua maratona de filmes na Netflix, para se distrair da tragédia mundial que ocorria em simultâneo, mantendo-se entretida e poupando a sua sanidade em tempos penosos. Esta visão, tristemente comum, encara a arte como conteúdo; uma percepção que cresceu durante a última década, incentivada por estúdios e serviços de streaming que colocam a sua atenção na quantidade, ignorando a qualidade. É um cesto de fruta, em desconto, onde o pestilento é mascarado pelo preço.
Uma sensação de desastre iminente espalhava-se pelas colinas de Hollywood, meses antes da greve da WGA (Writers Guild of America) iniciar no dia 2 de Maio, de 2023. Principalmente devido ao desinteresse da AMPTP (Associação de Produtores de Cinema e Televisão) – uma organização que representa os interesses dos estúdios – em colaborar com este sindicato que inclui cerca de 11.500 argumentistas americanos. A esperança ínfima de um acordo desapareceu rapidamente. Resumidamente, as demandas fundamentais da WGA residem num aumento de compensação mínima em todos os formatos de media; resíduos apropriados pelos sucessos das suas obras; transparência de comunicação nos serviços de streaming; proteção contra inteligência artificial, como o ChatGPT, uma maneira de impedir que este seja utilizado para substituir argumentistas e para proteger as suas palavras de alimentar a IA; e segurança financeira, física e emocional no local de trabalho – referindo-se às horas excessivas perante os limitados prazos que restringem a escrita. Os estúdios recusaram.
Naturalmente surgem dificuldades em estabelecer um acordo devido às mutações de Hollywood nesta última década; alterando drasticamente o corpo da AMPTP. Inicialmente, as produtoras serviam um modelo idêntico (cinema, depois o mercado televisivo e eventualmente DVDs e Blu-Rays); agora, com a inclusão de streamers como a Netflix e os interesses de estúdios divididos, como a HBO MAX que pertence à Warner Brothers Discovery, as normas e as referências adequadas diferem considerando os excessivos métodos de consumo díspares. Aliás, os serviços de streaming destacam-se como os principais antagonistas, na sua resistência contra as propostas de resíduos, pois recusam-se a partilhar dados exatos com os seus colaboradores. Todavia, existem negociações precisamente para assistir esta navegação complexa pelo sistema atual.
A WGA ofereceu uma estimativa financeira para os estúdios compreenderem a insignificante cavidade destes pedidos nos seus lucros. O acordo implicaria, por exemplo, 0.1% dos valores anuais da Netflix. Considerando o desprezo que os argumentistas sempre receberam em Hollywood (Emma Thompson, atriz e argumentista, mencionou uma cultura de desvalorização de argumentistas, referidos como “lowest of the low”), a resistência destas produtoras em participar nas negociações com um mútuo interesse em alcançar o melhor para ambos os lados ou simplesmente perceber que os membros deste sindicato merecem condições de vida minimamente aceitáveis, revelou-se como o twist mais óbvio desta película absurdamente desumana. Afinal, existem milhares de relatos acerca das experiências entre argumentistas com os estúdios que comprovam esta desconsideração pelo seu esforço e pela sua importância na arte audiovisual.
Ed Solomon, argumentista de Men in Black (1997), partilhou a sua frustrante experiência com a Sony Pictures Studios, que se recusa a pagar resíduos significantes ou lucro líquido, apontando para esta franchise bilionária como um fracasso financeiro. Por outras palavras, apesar de duas sequelas e um reboot, a primeira longa-metragem desta saga – com um orçamento de 90 milhões de dólares e rendimento de bilheteiras de 589.4 milhões de dólares – persiste em perder dinheiro, durante 26 anos. Esta revelação online influenciou criadores a divulgar similares experiências com os estúdios, como Jonathan Goldstein, um dos argumentistas de Spider-Man: Homecoming (2017), que, de acordo com a Disney, permanece distante de recuperar o seu orçamento. Similares vivências incluem atores, realizadores e uma indústria inteira de artistas e equipas criativas. Adam Conover, ator e argumentista, referiu o seu caso para notar as substanciais diferenças entre resíduos no passado (20.000 dólares anuais) com a presente situação nos serviços de streaming (500 dólares), ambos por obras de sucesso. David Duchovny processou a FOX por fraude financeira em relação à celebrada série The X-Files (1993 – 2018). O estúdio empregou uma artimanha onde vendia as reruns para as suas próprias estações, pelo mínimo dinheiro possível, mantendo os lucros (superiores a 100 milhões) dentro da FOX, e impedindo que a equipa responsável por uma das maiores criações da televisão, recebesse pelo seu sucesso. Kimiko Glenn, de Orange is the New Black (2013-2019) – um dos maiores êxitos da Netflix – obteve 27.30 dólares de resíduos pela sua participação em 45 episódios; Peter Jackson, o homem que dedicou mais de uma década a desenvolver uma das maiores trilogias de sempre no cinema, The Lord of the Rings (2001 – 2003), referiu que as produtoras envolvidas marcaram esta saga como um fracasso financeiro (mesmo assim insistem em produzir sequelas/prequelas/séries) forçando o realizador a processar os estúdios para ser pago o devido e merecido. Milhares de testemunhos que exibem uma tendência peculiar e uma vasta discrepância na comunicação dos seus ganhos. Para a Wall Street, os filmes são um sucesso de bilheteiras estrondoso. Para a equipa responsável pela criação dos filmes, são um fracasso.
Além destas práticas comuns, a conduta dos estúdios no decorrer desta greve amplificou a exasperação dos argumentistas. Técnicas monstruosas para escapar a paralisação da escrita e impedir um acordo justo com o sindicato propagam por Hollywood, despertando olhares alheios ao comportamento horrendo destes produtores. Produções americanas são transportadas para território internacional enquanto CEOs admitem intenções nefastas de aguardar até Outubro antes de regressarem às negociações com a WGA, sendo o seu objetivo prolongar o desemprego dos argumentistas, colocando-os numa posição financeiramente frágil até serem quebrados, ou, como mencionou um executivo, “arrastar a greve até os membros do sindicato perderem as suas casas e apartamentos”. Existe somente uma única descrição para esta estratégia: genuinamente malévolo. Falta apenas um gato deitado nos seus colos para acariciarem, para comprovarem a existência de antagonistas absurdamente maléficos dos cartoons, completando a imagem adequada. São ações que fariam um espectador, no cinema, queixar-se do argumento exageradamente irrealista. Esta ambição da AMPTP revela-se como completamente irracional, considerando o prejuízo de 4.5 biliões de dólares que os estúdios sofreram com a última greve dos argumentistas. Para comparação, um acordo justo com a WGA, SAG–AFTRA (Screen Actors Guild–American Federation of Television and Radio Artists) e a DGA (Directors Guild of America) atinge uma estimativa de 450-600 milhões de dólares anuais, divididos entre centenas de milhares de membros espalhados pelos sindicatos. Se os estúdios disponibilizaram-se a estas medidas incoerentes, então os valores pessoais rendidos pelos CEOs e produtores claramente ultrapassam a lógica.
“Sem argumentistas não existem atores”. O apoio da SAG-AFTRA presente nestas semanas com gritos ecoados por rostos familiares como Colin Farrell, conscientes da sua futura batalha com a AMPTP. Numa ocasião curiosamente invulgar em Hollywood, – até parece um filme – o prazo dos contratos com estes sindicatos (WGA, SAG-AFTRA, DGA) terminavam em datas próximas e, apesar da confiança dos estúdios em atingir um acordo imediato com os atores, o desinteresse destes diretores executivos em colaborar liberaram o caminho para o inevitável. Resumidamente, certos requerimentos da SAG-AFTRA seguem uma linha idêntica aos argumentistas, como o aumento de compensação mínima em todos os formatos de media de acordo com a inflação, transparência nos serviços de streaming, e resíduos apropriados pelo sucesso do seu trabalho. As divergências salientam-se na demanda pelo aumento de penalizações financeiras quando os estúdios retiram pausas para refeições e de descanso durante as produções e pelos constantes atrasos/falhas de pagamentos; no domínio de imagem e segurança contra inteligência artificial; restrições na manipulação de atores com IA ou CGI, exigido que os atores cujos rostos e corpos são replicados nestes métodos possuam poder de aprovação e compensação financeira negociada pela sua utilização. Os estúdios recusaram.
Fran Drescher, presidente da SAG-AFTRA, admitiu a sua ingenuidade ao acreditar que o tempo requisitado pelos estúdios destinava-se à criação de uma resposta adequada às suas demandas, quando a intenção destes estava somente em adiar as negociações para poderem continuar a promover os blockbusters de verão. Defronte a semelhantes condições, um momento histórico sucedeu no dia 14 de Julho, com o elenco principal de Oppenheimer (2023) a abandonar o tapete vermelho e a ante-estreia britânica desta longa-metragem, antes da sua exibição, para iniciarem uma completa paralisação de Hollywood. Um momento histórico, pois esta dupla greve aconteceu apenas uma vez, em 1960, quando a indústria sofreu uma transformação inédita com a aparição da televisão. A história condenada à repetição.
GOODFELLAS
And now for something (not) completely different: Comparar os salários dos diretores executivos com os criadores das obras que rendem os lucros.
- Os rendimentos dos estúdios aumentaram 39% enquanto o salário médio de um argumentista desceu 4%, na última década;
- 87% dos membros da SAG-AFTRA recebem cerca de 26.000 mil dólares por ano. Incapazes de qualificar para seguros de saúde;
- Bob Iger, CEO da Disney, recebe 74,175 mil dólares diários. Iger mencionou as demandas da WGA e da SAG-AFTRA como injustas, durante uma pausa da sua visita ao Sun Valley Summit, referido como “acampamento bilionário”;
- David Zaslav, CEO da Warner Brothers Discovery, e a personificação de uma lixeira, recebeu 498.915.318 milhões de dólares nos últimos cinco anos. Este é o homem que apoiou The Flash (2023), o maior fracasso histórico desta produtora, perdendo 200 milhões de dólares. É também a criatura responsável pela recente moda, espalhada pelos estúdios e serviços de streaming, de apagar filmes e séries da existência para poupar nos impostos.
Lamentavelmente, a pandemia afetou o mundo inteiro, incluindo cinemas, produtoras e a arte como um negócio. Essas dificuldades provocadas pelo coronavírus mancham as colinas de Los Angeles, exceto os homens nas torres. Uma indústria multibilionária despojada de espaço para recompensar os artistas pela sua arte, onde diretores executivos recebem bónus pelos seus falhanços, enquanto os criadores desesperam por criar. Dezenas de chefes de estúdios lucram o suficiente, num único ano, para financiar 100 longas-metragens, contudo os atores e argumentistas são acusados de desconsideração pelos cinemas e pelas audiências. Curiosamente, produtoras independentes distantes da AMPTP como a A24, aceitaram o acordo com os sindicatos, demonstrando que as exigências são, evidentemente, práticas. Um estúdio pequeno, cujo maior sucesso de bilheteiras é de 140.2 milhões de dólares, consegue recompensar os seus artistas, enquanto a Disney, com 4 longas-metragens que ultrapassaram, individualmente, os 2 biliões de dólares, considera as demandas injustas. Sucesso ou fracasso, recepção positiva ou negativa, é insignificante. Um artista merece condições de vida.
Para citar a mencionada longa-metragem escrita por Martin Scorsese e Nicholas Pileggi: “Business is Bad? Fuck you, pay me. Oh, you had a fire? Fuck you, pay me. Place got hit by lightning, huh? Fuck you, pay me.”
Vivemos na margem de um novo mundo: o formato mundial de consumo de entretenimento e arte sofreu uma transformação colossal, criando uma atualidade agravante nesta indústria com o domínio do mercado online, através dos serviços de streaming, e a sua classificação predominante de narrativas audiovisuais como conteúdo e dos seus criadores como instrumentos desumanos, tiranizados pela evolução tecnológica assombrosa. Estes avanços ocorrem isentos de mediação ou uma exploração considerável dos seus efeitos a longo prazo, permitindo os estúdios de adotar estes como benefícios, antes dos contratos com os sindicatos expirarem. Os aspetos auspiciosos deste progresso a desvanecerem no background desta orgia sanguínea. Simplificando décadas de transição, a média de 22 episódios por temporada reduz para cerca de 10 episódios, por vezes menos, estabelecendo uma oportunidade para as produtoras de apostarem no financiamento de diversas séries. Quando a métrica de sucesso reside no número de subscritores, invés do número de audiências, quantidade supera a qualidade. A visão de um artista inferior a um algoritmo insignificante. Naturalmente, esta mutação no consumo altera drasticamente o processo de produção.
Anteriormente, argumentistas escreviam uma temporada completa no percurso de um ano, incluindo durante as filmagens, devido ao volumoso número de episódios, contudo, perante uma normalidade do bingewatching e uma quantidade reduzida de episódios, uma série carece de uma temporada inteira finalizada, imediatamente disponível para distribuição. Writing rooms são substituídos por mini-rooms, com escassos argumentistas a delinear uma duradoura história numas semanas, restringidos a contratos que os colocam a aguardar pela confirmação da produção, durante meses sem pagamento, impedidos de aceitar propostas alternativas. Atrasos nos períodos de filmagens e no processo de escrita causam pausas superiores entre temporadas, inevitavelmente, afetando a equipa criativa, incluindo atores, dependentes de resíduos devido ao tempo inferior de trabalho.
Através deste espaço de entretenimento online, informações são facilmente obstruídas pelos estúdios. As bilheteiras revelam resultados exatos enquanto os serviços de streaming controlam a sua realidade; transformando a verdade na sua vontade própria. Um movimento que, acompanhado pela recente epidemia de eliminar séries e longas-metragens da existência para poupar nos impostos, nega a hipótese a uma história de encontrar a sua audiência no futuro, aniquilando completamente o seu sucesso e a possibilidade de resíduos para os seus criadores. É sempre necessário recordar que se Breaking Bad (2008 – 2013) fosse produzido atualmente pela Netflix, seria cancelado pois esta obra apenas alcançou uma prosperidade estável na sua terceira temporada.
No decurso destes últimos anos, produtoras vampíricas usufruíram destas vantagens para esgotar o sangue destes artistas. Agora, lamentam pelo declínio do mercado sanguíneo. Hollywood devora a pele, órgãos e a carne dos seus habitantes, com a promessa de um destino milionário. A realidade é que por cada Leonardo DiCaprio, há milhares de atores com segundos empregos. Por cada Aaron Sorkin, há milhares de argumentistas despojados de tempo para escrever. Rostos no ecrã, iluminados pelos olhos de milhões de indivíduos, à sombra dos estúdios. Palavras memoráveis, citadas pela população, enraizadas na cultura pop e na própria comunicação entre amigos, familiares e desconhecido online, elaboradas por seres humanos. Indivíduos cuja carreira depende do mood e intuição de criaturas que olham para um computador à procura de respostas sobre a produção de arte. Esta contenda por resíduos não é acerca de celebridades, é pelos que permanecem na extensa estrada amarela, a construí-la, conscientes da sua fragilidade. Como Fran Drescher mencionou, a mudança de sistema implica a mudança de contrato.
ARTE SEM ARTISTAS
“We don’t give two shits about how technology works because all we care about is getting fucking rich.” – Matthew McConaughey em The Wolf of Wall Street (2013). Realizado por Martin Scorsese, argumento de Terrence Winter.
Presentes desenvolvimentos tecnológicos revelam uma eventualidade profundamente tenebrosa com o incentivo da obliteração criativa e a extinção da estima pela arte como uma conceção emocionalmente humana. Similar a numerosas aplicações pela internet, a inteligência artificial oferece entretenimento quando ignoramos as suas potenciais consequências. Quantas sequelas do Terminator são necessárias para aprendermos? O comportamento da AMPTP descortina um trajeto pela desumanização da arte, refletido nas suas respostas à compensação financeira destes criadores e no seu entusiasmo pela funcionalidade da inteligência artificial na composição de obras audiovisuais. Para os estúdios, a inteligência artificial é uma solução para retirar a mão-de-obra humana no engenho artístico, apressar produções e conservar os lucros nos seus cofres caseiros. As suas absurdas contra-ofertas à WGA e à SAG-AFTRA, perante uma exigida segurança contra a inteligência artificial, sendo a realização de um scan de rostos de figurantes, para poderem possuir as suas imagens eternamente e replicarem estas nos seus produtos, sem compensação financeira aos atores. Inúmeras pessoas cuja identidade física pertenceria, para sempre, a uma companhia. Matt Damon e Ben Affleck entraram nesta indústria como figurantes; assinar este acordo implicaria o fim das suas carreiras antes sequer de começarem. As suas faces, perduravelmente, no background de blockbusters, indistinguíveis entre milhares de rostos criados através de um computador. Inacreditável, assumir que esta contraproposta seria respondida com apreciação, invés do absoluto desrespeito que reside na sua conceção.
Décadas de experiências com estes mecanismos culminaram numa explosão de arrogância corporativa e desinteresse humano. A Inteligência Artificial permanece ativamente empregada em diversas obras audiovisuais, principalmente através de CGI para deaging de atores, exemplificado num Harrison Ford rejuvenescido em Indiana Jones and the Dial of Destiny (2023), todavia estas intenções perversas manifestam-se desde sempre. Jet Li recusou-se a participar em The Matrix (1999), motivado por uma preocupação acerca das intenções da Warner Brothers, cujo contrato estipulava o registo do seu rosto, corpo e movimentos de artes marciais para manusear como propriedade intelectual. The Flash (2023) é um desfile por cadáveres ressuscitados através deste processo, exibindo orgulhosamente a imagem do Super-Homem original, George Reeves, um ator cujo suicídio ocorreu (alegadamente) devido a uma depressão causada por uma carreira fracassada e o seu ódio por interpretar esta personagem. Sinto a necessidade de repetir este ponto: um ator, cuja morte está associada à sua frustração por representar o Super-Homem, é ressuscitado como um cameo nesta personagem, através destes métodos medonhos. Existe, literalmente, uma longa-metragem acerca desta tragédia, intitulada Hollywoodland (2006), onde Reeves é interpretado por Ben Affleck. Condutas possíveis pois os contratos com os sindicatos foram criados antes deste crescimento tenebroso e do reconhecimento comum das suas inevitáveis consequências.
A Disney e a Netflix investem milhões de dólares no desenvolvimento de inteligência artificial para as suas produções, enquanto a Universal Pictures e a Disney (novamente) lutam para remover os seus potenciais danos fiscais caso empreguem estes métodos para substituir trabalho humano. Obviamente, os estúdios veneram a inteligência artificial. São idênticos: alimentam-se de informação, argumentos, textos e palavras, absorvidas sem o consentimento dos seus autores; furtam os corpos, rostos e vozes de seres humanos que dependem destes para as suas carreiras (sem o seu consentimento); sequestram as obras destes artistas e colocam o seu nome nos créditos, como se fossem os autênticos criadores.
Não. Não é similar a um argumentista influenciado ou inspirado por uma história, precisamente porque este é um ser humano movido pela sua voz, pensamentos e experiências únicas; movido pela sua identidade e a sua vida. Um computador é movido por código; por um algoritmo. Apenas retira e compila. Porque para este não é arte, é conteúdo. Uma equivalente percepção em diretores executivos, como David Zaslav, Bob Iger ou Ted Sarandos, compele-os a apagarem filmes e séries da existência para poupar nos impostos, eliminando o trabalho e investimento de equipas de milhares de pessoas; artistas que entregaram o seu tempo, a sua criatividade e as suas vidas a estas obras, porque a arte nas mãos destes indivíduos é somente conteúdo. Seres Pavlovianos que treinaram o espectador a consumir ao som de um sino; a encarar arte como um segundo monitor. Um buffet de entretenimento vazio à escolha, com o direito ofensivo de ingerir uma história ao dobro da sua velocidade original e um skip automático nos créditos finais. Sem artistas, não existe arte. Simples. Arte é uma expressão naturalmente humana, o elemento que conecta a humanidade.
“Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”. Estas palavras do filósofo Confúcio são habitualmente manejadas com intenções manipulativas ou uma visão ingénua, particularmente em Hollywood. Todavia, esta expressão implica que um emprego é suposto ser uma escolha; uma decisão que adiciona significado à nossa existência, invés de um fardo. Esta citação popular nunca sugeriu a aceitação de um trabalho destituído de recompensa monetária. A paixão por estas ocupações artísticas exigem esforço, empenho, dedicação, tempo e suor. Exposição não paga as contas. Ninguém consegue criar arte quando está prestes a perder a sua casa. É absurdo que este combate por espaço, valor e humanidade perdure diariamente, pois nenhuma obra audiovisual inicia sem um argumento e nenhuma existe sem um ator ou uma atriz.
Independentemente destes sindicatos alcançarem um acordo nos próximos dias, semanas ou meses, as consequências do desrespeito dos estúdios pelos artistas ardem como chamas, clareando Hollywood numa tonalidade sombria, enquanto o fumo deste incêndio alastra pelas nuvens, anunciando a alvorada de uma guerra inédita. O fim marca o início. Anos de injustiças, adversidades acumuladas e descontrolo nas colinas de Los Angeles, onde as desigualdades correm, cantando a sua própria versão de The Sound of Music, explodiram nestes protestos. No coração desta paralisação reside uma batalha para garantir os direitos básicos de um artista e a produção da arte como uma profissão financeiramente estável. Uma contenda contra o domínio da inteligência artificial e contra a desumanização da arte. Um reconhecimento dos seres humanos responsáveis pelas obras audiovisuais que veneramos, amamos, detestamos e esquecemos.
Este é um movimento histórico e essencial para todos os artistas, espalhados pelo mundo, passado, presente e futuro. Uma guerra pela existência da arte. Os estúdios pretendem criar arte sem artistas, mirando as múltiplas utilidades da inteligência artificial como abutres a aguardar pela decomposição de um corpo para se regozijarem nas suas entranhas. Um CEO não cria arte, monetiza-a. Despojados de interesse, respeito ou empatia pelos criadores que causaram a sua riqueza, os estúdios persistem em lucrar com sonhos enquanto rejeitam os sonhadores. O espelho fragmentado causado por estas greves revela a sua natureza, incapaz de evolução. Eventualmente, a humanidade acorda e compreende a essência da arte como uma conexão entre a realidade e os sonhos, como uma fundamental representação da nossa existência, e como uma ligação emocionalmente crucial para a nossa vitalidade. As máquinas conseguem emular tudo, mas são incapazes de sonhar.