Recordar o dia de ontem com saudade é um elemento intrínseco do envelhecimento, comum em todos os seres humanos, inclusive artistas. Realizadores celebrados como Steven Spielberg, Kenneth Branagh e Sam Mendes são os mais recentes a aventurar-se nesta exploração da sua juventude ou do nascimento da sua paixão pela sétima arte. É inevitável para criadores construírem narrativas através das suas memórias e das emoções que estas emitem no seu presente, principalmente ao atingir um percalço dramático na idade em que olhar para o passado e vislumbrar a infância em 35mm é uma forma de anseio pelos momentos de inocência e família, longe da morte e do peso do tempo. Contrariamente às viagens cinemáticas de diversos realizadores, James Gray demonstra um profundo desdém em nostalgia. Gray procura compreender a época desastrosa onde cresceu e examinar os ideais que enganaram uma nação, incluindo o próprio cineasta.
Situado em 1980, Armageddon Time segue Paul Graff (Banks Repeta), um jovem rapaz judeu, apaixonado pelas artes, referido como problemático e lento de aprendizagem na sua escola pública de Queens em Nova Iorque. Ao iniciar o sexto ano, Graff cria amizade com um rapaz afro-americano, Johnny Davis (Jaylin Webb), conhecido pela sua rebeldia neste ambiente escolar. Esta potente ligação emocional empurra os dois jovens a perseguir os seus sonhos, testando a sua amizade num país governado para dividir e espalhar o medo.
Eis a era do desconforto; os Estados Unidos de Ronald Reagan cujos discursos focavam-se principalmente no fim dos tempos, no Armageddon à beira das cidades suburbanas com todas as formas de racismo, xenofobia e homofobia à espreita nas suas palavras. Irving Graff (Jeremy Strong), o pai do protagonista, observa o futuro presidente na televisão, com raiva. Uma família de democratas que aparentam uma consciência da crescente atmosfera americana. Aparenta é a palavra-chave desta longa-metragem semi-biográfica de James Gray, uma exploração densa de múltiplas temáticas como o processo de assimilação para a comunidade judaica, a descarrilada relação entre classes sociais, o envenenado sistema de ensino estadunidense e o estatuto de privilégio branco que existe acompanhado pelo sentimento de culpa e negação.
Armageddon Time é imperfeito. Seria estranho se uma longa-metragem criada por um homem caucasiano de meia-idade acerca de white guilt, relações raciais e as subdivisões dos direitos humanos conseguisse atingir uma narrativa ideal. Mas é um filme honesto. É das obras mais honestas dos últimos tempos, nesta perspectiva. O seu argumento permanece profundo e multifacetado mesmo quando sofre os defeitos comuns deste género, pois Gray recusa-se a limitar os pontos dramáticos desta história, compreendendo as inerentes complexidades temáticas exploradas. Distante de Crash (2004) e Green Book (2018), Gray importa-se genuinamente com as suas personagens perdidas e a explosão de imoralidade do seu mundo; o realizador nunca utiliza estes conceitos somente como proveito dramático ou com o objetivo de arrecadar prémios e glorificar a sua pessoa. Existe uma notável tentativa de refletir no passado e compreender a forma como estes sentimentos evoluíram e como os ideais de um país denegriram ao longo das décadas. O espaço entre as classes sociais aumenta, criando uma era de – falsa – crença no conforto onde o privilégio opõe-se à ética. É um elemento personificado em Esther Graff (Anne Hathaway), a mãe do protagonista, que mesmo revelando consciência moral, esta mantém-se posterior aos seus desejos pessoais.
As palavras dos indivíduos que rodeiam este protagonista contradizem constantemente a verdade humana; são discursos criados para justificar escolhas duvidosas e ações disformes partilhados em televisões, alastrando-se até às escolas públicas e privadas e até típicas famílias americanas. Crescer neste ambiente pesa na mente de uma criança sonhadora, desinteressada nos estudos de um sistema que demonstra semelhante desinteresse no futuro dos jovens que educa. A sua família acredita no sonho americano e pressiona este nos seus dois filhos, escolhendo propositadamente ignorar a paixão criativa de Graff, que depende do apoio e conforto do seu avô, Aaron Rabinowitz (Anthony Hopkins). O celebrado ator interpreta a alma desta narrativa; um homem idoso que exibe entusiasmo pela chama artística do seu neto, educando este com histórias da sua família e da sua batalha para sobreviver ao período nazi e os seus recorrentes conflitos presentes contra o anti-semitismo nos Estados Unidos. Num elenco preenchido com atores absolutamente incríveis é Hopkins que destaca-se com uma tocante performance, na sua tentativa de encaminhar o jovem a compreender o mundo e as suas injustiças para poder encontrar a sua oportunidade neste, sem nunca perder um sentido de justiça moral. É a voz da razão num espaço criado para apagar vozes exteriores.
Precisamente por este fragmento de integridade honrável em Queens demonstrar-se debilitado pelo tempo, a esperança sobressai principalmente na amizade entre os dois jovens, fomentada por um verdadeiro sentido de companheirismo estimulante. Quando os dois amigos simplesmente convivem sozinhos, distantes de olhares alheios, a cínica – todavia realista – percepção atual de Gray desvanece, substituída por uma graciosidade afável. Inevitavelmente, numa história semi-biográfica sobre a infância de um homem caucasiano, Johnny é representado ocasionalmente como um adereço secundário nesta exploração da ignorância branca que é arrastada financeiramente pelas figuras no topo com a promessa emocional de uma vida melhor – se – colocar o seu pleno esforço nas suas próprias raízes. No entanto, a atuação de Jaylin Webb (e a química natural entre os jovens) eleva a sua personagem e consegue compensar este percalço narrativo. O impacto da sua conclusão sucede sobretudo pela sua performance.
Armageddon Time recusa-se a ser autocongratulatório, manifestando uma profunda vergonha no seu (nosso) passado e uma honestidade brutalmente horrível que devemos, como seres humanos, enfrentar imediatamente. A tragédia do seu momento climático age como uma recordação que a nossa sociedade permanece distante da sua meta final; afetada pela ilusão da mudança. Um ciclo temporal, onde o apocalipse é distinguido como uma profecia realizada e incentivada pelo seu próprio “profeta”. Os discursos de ódio, a atribuição de culpa no “outro”, a negação de verdadeira introspeção e a rejeição de uma reflexão além do superficial. As nossas instituições povoadas por frases inspiradoras acerca de lutar pelo que é nosso e evoluir através da nossa vontade com, neste caso, um discurso criado por uma mulher milionária partilhado com os estudantes de uma escola privada. Esta, talvez, seja a penosa mensagem de James Gray. Apagar a nostalgia do ontem e compreender que na realidade nada mudou implica aceitar uma vida desperdiçada numa lógica autodestrutiva. Contudo, persistir sem o fazer implica a nossa extinção moral. Atualmente, a evolução tecnológica assiste a expansão deste sistema que incentiva uma mentalidade individual, ignorando o facto que uma voz não compõe uma orquestra. O sonho americano não é partilhado, funciona como uma lotaria genealógica enquanto o Armageddon é agora domínio público.