E se de repente o que escrevemos se tornava realidade? É neste pressuposto que o último filme de Matthew Vaughn se baseia ao acompanhar Elly (Bryce Dallas Howard), uma escritora especializada em espionagem que vê as suas criações literárias a materializar-se à sua frente embrenhando-a num mundo que conhece bem mas não está preparada para enfrentar.
Parece, desde logo, haver aqui um desejo de entrar num mundo que foi negado aos seus criadores, o universo Bond, ao qual Henry Cavill é frequentemente apontado como possível sucessor e que Vaughn demonstra uma pessoal paixão, com a sua influência sentida nos seus projectos, incluindo nas sequências de acção com adrenalina a rodos, no seu flair visual vincado e nas pitadas de comédia que criam um ritmo único e intenso. Fê-lo na saga Kingsman, que parece querer manter viva num futuro próximo, em Kick-Ass (2010) (ainda o meu favorito do realizador) e praticamente deu o papel de James Bond a Daniel Craig, na sua estreia em longas-metragens, com Layer Cake (2004).
E estas previsões concretizam-se logo, desde cedo, com um prólogo em que conhecemos o agente Argylle (Henry Cavill) e a vilã Lagrange (Dua Lipa) e nos deparamos com o realizador a colocar, literalmente, tudo nesses poucos minutos escritos no parágrafo anterior. Há aqui uma previsibilidade, no bom sentido, de um tempo bem passado no cinema, a que o realizador já nos habituou.
Henry Cavill surge impecavelmente vestido, com um penteado nunca visto. Ainda mais perfeito que Bond mas com uma aparente falta de noção do ridículo e do exagero ao seu redor, criando uma personagem difícil de não gostar, apesar de surgir bem menos do que aparenta o trailer. Dua Lipa, como Lagrange, qual femme fatale dos tempos modernos mas com pouco tempo para criar uma personagem para lá do clichê. Aliás, este é o destino de quase todos os actores presentes (que são demasiados) como John Cena, Ariana DeBose, Samuel L. Jackson, Brian Cranston, Catherine O’Hara e mais alguns inesperados cameos. Todos têm pouco mais que um par de cenas para mostrar serviço, tal é o ritmo imposto pela narrativa sempre a 1000 à hora e sem tempo para grandes perguntas e respostas ou sentimentos para lá dos instantâneos. Todos são, aparentemente, criações da mente de Elly Conway, interpretada por Bryce Dallas Howard, uma escritora neurótica, assustada e com medo de ser feliz, que se junta a Sam Rockwell, como Aidan, um agente secreto incumbido de proteger Elly, na vida real. Sam Rockwell está igual a si próprio com um excelente timing cómico e um carisma inegável. Bryce Dallas Howard parece sempre menor, quando partilham o ecrã, mas é mais por mérito de Rockwell que demérito da actriz. Há, também, uma clara harmonia cómica entre Elly e Aidan mas o mesmo não se materializa na química romântica entre ambos o que prejudica a metade final da história.
E sobre ela não se pode adiantar muito sem estragar as muitas e agradáveis (na sua maioria) surpresas e reviravoltas que a história sofre. Ver para crer será a frase mais indicada para descrever o argumento, como um convite ao espectador para o descobrir por si. Aliás, o próprio trailer, funciona como um aperitivo mas está bem longe da sobremesa que nos é servida.
As sequências de acção são exageradamente grandiosas e demasiado dependentes de CGI. Existem vários exemplos em que a opção CGI pode ser facilmente substituível por efeitos práticos ou por uma equipa de duplos e por isso esta opção soa a preguiçosa em algumas ocasiões. Essa grandiosidade e falta de realismo também funciona a favor da história ao dar ao exagero um charme inegável raramente visto em filmes de acção mais recentes. Essa habilidade de Vaughn, de criar autênticos “bailados” visuais de cor e de os infundir com violência, comédia e romantismo, muitas vezes na mesma sequência, é algo único e por isso de louvar.
Nota final para a banda sonora omnipresente e rotineira e com uma seleção de êxitos orelhudos de diversas décadas da história mais recente da música. Não poderia ser mais apropriada para o que vemos no ecrã mas fica a ideia que poderia ter ido um pouco mais ainda para o lado do ridículo para amplificar o lado cómico da narrativa.
Argylle é uma divertida, intensa e previsível viagem carregada dos clichês que Matthew Vaughn tanto aprecia. Um avassalador conjunto de twists deixam-nos sempre em constante ansiedade, e em dúvida da sua relevância, mas acaba por ser nas sequências de acção over the top que o espectador é conquistado. Se és fã de Vaughn entra sem reservas, se o odeias foge a sete pés.
Ps: Eu sou fã de Matthew Vaughn