Antlers, de Scott Cooper – um realizador a fazer cinema variado e com qualidade – e com produção de Guilhermo del Toro – um dos mais respeitados realizadores de terror contemporâneos – conta com Jesse Plemmons e Keri Russell no elenco (dois interpretes que respeito e admiro). Havia aqui matéria-prima para produzir algo interessante mas o meu instinto dizia-me que algo estava mal. Pode isto funcionar? São muitos os exemplos no cinema de grandes talentos que juntos não resultaram. Seria este mais um deles? Seria este um filme de terror para cumprir calendário e pregar uns sustos fáceis?
O filme conta a história de duas famílias do estado do Oregon nos E.U.A.: a família Meadows e a família Weaver. Em plena crise económica, o ambiente na cidade é desolador. Todos são vítimas da falta de trabalho e de oportunidades, e a frustração dos pais contamina os filhos. A família Weaver é uma dessas famílias. Após a morte da mãe de forma inesperada, o pai Frank (Scott Haze) recorre a práticas ilegais para manter comida na mesa para os seus dois filhos Lucas (Jeremy T. Thomas) e Aiden (Sawyer Jones). Do outro lado da lei encontra-se a família Meadows: Paul (Jesse Plemmons) é o mais recente xerife da cidade; e Julia (Keri Russell) está de regresso a casa para estar com o irmão, pois sente-se culpada por abandonado-lo numa família de abuso. Uma criatura ancestral surge nas florestas em redor da cidade. E está faminta de carne humana.
Quando Antlers começa estamos nesse exato momento. No meio de uma lenda de tempos antigos, a que os nativos americanos chamavam de Wendigo. O início do filme, com o ecrã a preto, invoca isto mesmo: a ancestralidade ligada ao passado nativo da América. Logo após esta introdução estamos no presente, e este é ainda mais desolador. Uma criança sozinha e deixada à sua sorte. A ameaça de uma desgraça eminente é imediatamente estabelecida e a criação do ambiente assim continua na primeira metade do filme, sempre de forma muito orgânica e natural.
A personagem principal, Julia, é alguém em busca de redenção. Uma professora desiludida com a sua profissão, que não consegue motivar nem os seus alunos nem a si própria. Carrega consigo um peso muito grande, que advém do abuso e do trauma que sofreu em criança. Por este motivo, consegue ver em Lucas o olhar que ela própria carregava, os sinais são muito claros: esta criança precisa de ajuda, mas é usada como expiação dos seus pecados – são eles o motor desta história.
É apenas sobre os ombros de Lucas que recaí o filme. A fisicalidade de Jeremy T. Thomas é impressionante: o seu corpo esguio e desconjuntado; a maneira como está curvado na secretária da escola, como se o peso do que se passa na sua vida fosse impossível de suportar; o seu olhar vazio, vazio de esperança. Está sozinho no mundo e ninguém o pode ajudar. Tudo isto culmina na cena mais assustadora do filme, que não é a típica revelação do terrível monstro ou um corpo desmembrado. É a turma de Lucas a ver um filme na sala de aulas, onde o trabalho de som e edição são tão irrepreensíveis que senti um arrepio na espinha. Para alguém tão novo conseguir carregar toda esta dor é impressionante, e atrevo-me a dizer que o filme perde muito quando ele se ausenta da tela.
Keri Russell faz o que pode, o argumento não a ajuda mas vejo mágoa e culpa no seu olhar, e tem o seu “renascar das cinzas” quando vê que pode fazer a diferença na vida de Lucas. O restante elenco está apenas para servir a história: temos o bully de serviço e a diretora preocupada na escola; o xerife (Jesse Plemmons tão subaproveitado que doí) e o ajudante a investigar; o nativo americano, ex-xerife, que conhece a lenda sobre o Wendigo; e o pai e o irmão de Lucas, “responsáveis” pelo seu sofrimento.
Enquanto o Wendigo é apenas uma história dentro do filme, uma ameaça omnipresente mas nunca vista, funciona. O sentimento de medo é palpável: cada caminhada de Lucas pela floresta para a sua casa é arrepiante; as “fechaduras” e cadeados na sua porta; as pancadas violentas a meio da noite; a luz da lanterna a iluminar o rosto; o medo no seu olhar – funciona MESMO. Mas estamos em território de filme de terror e é preciso mostrar algo mais, e é aqui que o filme começa a perder o rumo. Quanto mais mostra, mais perde a sua identidade e se transforma no habitual desfilar de clichês de qualquer filme de terror. Os amantes de gore vão salivar pois os efeitos são de grande qualidade, os sustos fáceis estão garantidos por isso preparem-se para saltar da cadeira.
Scott Cooper consegue criar o ambiente desolador de uma cidade sem esperança. É um filme pesado e sufocante, com as temáticas de abuso e trauma omnipresentes. Não há sorrisos. O trabalho de fotografia mostra o essencial e o ambiente sonoro irrepreensível na primeira metade do filme dão gravitas a um argumento banal. Quem carrega, no entanto, o filme aos ombros é Jeremy T. Thomas, com uma interpretação magistral. Sentimos a sua dor, o seu trauma, mas também a sua coragem e determinação. É pena que depois caia nas habituais armadilhas do género de terror, com demasiadas explicações e o ridículo confronto final. Era mesmo preciso mostrar e dizer tudo? Uma boa lição para Scott Copper: o que fica por dizer é sempre muito mais assustador.