No fundo da garrafa encontra-se a sede para a próxima, uma persistência para permanecer na festa, independentemente do seu encerramento. Esta sensação envolta o novo projeto de Thomas Vinterberg, desde as suas origens até à sua estreia. Inicialmente, este era um enredo sobre a celebração do álcool em contexto histórico, baseado numa peça de teatro que Vinterberg escreveu no passado e inspirado pelos contos da cultura de bebida da juventude Dinamarquesa, partilhados pela sua filha, Ida. Foi a sua insistência que convenceu o pai a realizar Another Round, com a jovem a interpretar uma das personagens. Infelizmente, no inicio das filmagens, Ida faleceu num acidente de carro. Uma tragédia que transformou o argumento, substituindo os seus temas simples por um maior significado emocional vivificante, como homenagem à sua filha.
Druk (título original) é uma comédia dramática Dinamarquesa sobre Martin (Mads Mikkelsen), um professor de meia idade, adormecido na rotina e desprovido de qualquer entusiasmo ou esforço, simultaneamente no emprego e no seu casamento. Consciente das consequências desta situação, Martin junta-se a três colegas de trabalho numa experiência para testar uma teoria que dita que a espécie humana carece de um consumo de álcool diário para enfrentar o dia com energia e deleite.
Um estudo psicológico de uma personagem que perdeu a sua visão encantadora do mundo e navega presentemente pelos dias em modo auto piloto, sem motivo para chegar ao amanhã. Esta melancolia é acompanhada por um descontentamento que coloca Martin nesta posição frágil, pronto para recuperar o prazer cotidiano que sentia no seu passado.
A água altera para vinho que converte-se em vodka, como uma espécie de Jesus Cristo da Rússia que entrega a salvação dentro de garrafas térmicas. As personagens divertem-se ao constatarem os diversos aprimoramentos nos seus empregos e nas suas vidas privadas, principalmente Martin, cujo carisma e charme salta para as suas aulas e mesa de jantar, capturando a atenção dos seus alunos, família e dos espectadores com uma energia espantosa e feroz típica do excelente Mads Mikkelsen.
Os elementos humorísticos desaparecem gradualmente quando a realidade atravessa o embriagamento, numa extensão lógica da concepção desta narrativa. Um pressentimento de catástrofe permanece em cativeiro nas gargalhadas, pronto a interromper o prazer a qualquer instante, com características nebulosas. Distanciando-se de uma fantasia cautelosa, o argumento impede-se de afogar nos terrores do excesso desequilibrado ao demonstrar os desfechos da contradição do álcool, retratando a dependência em apagar o pensamento com uma empatia necessária para representar aqueles em que a frase Another Round possui implicações tenebrosas.
No entanto, uma sombra inquietante obscura questões atribuladas na raiz desta sociedade, particularmente para um país com uma taxa elevada de consumo de álcool em adolescentes (A World Health Organization determina que jovens de 15 anos consomem o dobro da média Europeia). Vinterberg escolhe focar-se na perspetiva de um homem de meia-idade, abandonando uma exploração plena desses aspetos questionáveis.
A veia poderosa desta obra reside na metamorfose do argumento para a realização que utiliza as suas componentes espirituosas em frascos como um princípio intuitivo de analisar a morte do desejo em mentes restringidas. Another Round é uma celebração da vida, que suplica à audiência para libertar-se das correntes sociais e encarar o dia com uma dança de jovialidade sedenta por mais.
Sendo um dos cofundadores do movimento cinemático Dogme 95, cujo um dos objetivos era encontrar a verdade no cinema, Vinterberg ressurge um estilo semelhante aqui, com uma câmara handheld e improviso incentivado nas filmagens, aproximando-se das intenções naturalísticas deste manifesto sem a compressão artística das suas regras. A direção de fotografia captura o processo transformativo através de close ups que atribuem o domínio narrativo aos atores e aprofundam a substância dramática.
O elenco usufrui da camaradagem na equipa de produção familiar, para libertarem-se da vergonha, estabelecerem uma relação intensa com as suas respetivas personagens e enaltecerem a química entre o grupo principal. Todos os atores são excelentes, no entanto, este é o show de Mads Mikkelsen que representa as várias facetas de Martin, conservando o núcleo de um homem sem qualquer apreciação pelo seu redor ou por si próprio. A sua performance é dócil, vívida, esbelta e humana, com um apetite pelo presente que comanda a tela como parte da sua coreografia.
Uma das melhores imagens finais no cinema dos últimos anos, que recorda clássicos como The 400 Blows (1959) e Zorba the Greek (1964). Uma cena que irá perdurar nas memórias dos espectadores, repleta de significado ambivalente que caminha entre otimismo contagiante, euforia física e mental e funciona como um símbolo de desgosto, preso num ciclo interminável de vício. Esta desordem crucial de pura desinibição resume a longa-metragem com um destino aberto a todas as possibilidades. Uma conclusão absolutamente perfeita para esta história.
Devido à infeliz circunstância que sucedeu, esta produção enfrentou um período complicado de mágoa que incentivou uma maior intimidade entre todos. “A minha vida foi destruída”, Vinterberg mencionou numa entrevista, aludindo à proximidade que tinha com a sua filha. Para ele não fazia sentido continuar mas também não fazia sentido não continuar. Recordar o momento em que a jovem leu o argumento e admitiu sentir-se compreendida serviu como motivação para persistir na realização. A sua presença, juntamente com as emoções de luto, surgem no ecrã de início ao fim. Este é um filme intoxicante sobre o vazio do ser humano e a forma como cada um procura preencher esse, uma análise fascinante ao anseio por júbilo e por abraçar o mundo entre a dor e o amor. Neste sentido, Another Round captura a vida numa garrafa.