Anora é uma história atrevida, profana e muito moderna; uma adaptação do conto da Cinderela, protagonizada por dançarinas exóticas e brutamontes da Europa de Leste. O filme, que conquistou a cobiçada Palma de Ouro, no Festival de Cinema de Cannes, em maio de 2024, reflete, à semelhança dos trabalhos anteriores de Sean Baker, a complexidade do american dream, nas mãos dos marginalizados – ou, mais precisamente, os seus limites, que tornam as promessas de igualdade e de ascensão pessoal em algo distante e quase utópico. Embora Baker já tenha sido amplamente elogiado por trabalhos como Tangerine (Tangerina, 2015), The Florida Project (Projeto Flórida, 2017) e Red Rocket (2021), Anora é o seu filme mais homogéneo e coerente, fundindo a sua abordagem intuitiva e refinada de temas tabu com uma ambição ousada e frenética.
No caos vibrante de um strip club em Manhattan, nasce um romance improvável entre Anora (Mikey Madison) e Ivan (Mark Eydelshteyn), dois jovens que se encontram em lados opostos da noite – ela a trabalhar; ele como cliente.
Ani (como prefere ser chamada), é uma dançarina exótica de 23 anos, de ascendência russa, mas é o ritmo e são as marcas de uma nova-iorquina de longa data que definem a sua personalidade. Inteligente e perspicaz, Ani esconde mais do que deixa transparecer, enquanto lida com uma vida pessoal turbulenta nos subúrbios de Brooklyn. Vanya (como também prefere ser chamado), de 21 anos, é o filho mimado de um oligarca russo, acostumado a uma vida de luxo, com acesso ilimitado à fortuna da família, mas sem nunca ter levantado um dedo para trabalhar. A imaturidade fá-lo parecer ainda mais jovem do que realmente é. O contraste entre estes dois mundos define a dinâmica da relação: dois jovens tão diferentes que a ideia de que “os opostos atraem-se” parece uma teoria obsoleta. Um encontro casual leva a um acordo inusitado: ele oferece-lhe dinheiro para que finja ser sua namorada por uma semana. Esse acordo leva-os a um romance extravagante, com direito a um casamento em Las Vegas, regado a champanhe e que promete deixar uma ressaca amorosa inesquecível.
Ani está tão convencida da inabilidade deste amor que é completamente apanhada de surpresa quando os pais de Vanya descobrem a relação e mandam os seus guardas (Karren Karagulian, Vache Tovmasyan e Yura Borisov) à mansão para anular o casamento. O que deveria ser uma intervenção simples, desdobra-se numa das noites mais longas das suas vidas pelas ruas de Nova York.
Anora destaca-se pela maestria do seu elenco e pela audácia em explorar personagens que muitos outros realizadores hesitariam em abordar. Baker revela, com sensibilidade, as falhas e virtudes humanas das personagens, mesclando humor e desespero de maneira singular. O verdadeiro triunfo do filme é a performance inesquecível de Mikey Madison, que dá vida a uma heroína indomável, tão fascinante quanto imperfeita; um objeto para os homens, mas uma força avassaladora no seu próprio direito. Ao invés de recorrer a clichês sobre o trabalho sexual, Baker oferece uma visão autêntica e multifacetada da sua protagonista, uma personagem que, sem dúvida, deixará uma impressão indelével no público.
Se Anora carrega ecos de Cinderela, é Ivan quem os desconstrói por completo. No papel de “príncipe”, Mark Eydelshteyn evita qualquer brilho heróico e revela, ao contrário, uma vulnerabilidade quase cómica, que derruba o sonho de resgate romântico. A sua atuação, também ela longe dos clichês, não só complementa a força inquebrável de Ani, mas também fortalece a mensagem do filme: o amor aqui é despido de ilusões e rico (em autenticidade).
Parte do charme de Anora está justamente na imaturidade desajeitada de Vanya e na maneira como Ani, mesmo sendo tão astuta, acaba envolvida nesta confusão. Baker conduz a narrativa com uma dose generosa de humor, usando a cidade de Nova York como um cenário dinâmico, no qual a riqueza e a miséria se entrelaçam. O resultado é uma viagem intensa e repleta de ironia, em que as personagens se lançam como peças de um jogo, que não compreendem na totalidade. Esta transição entre o humor e o drama cria uma tensão deliciosa, mas também deixa clara a natureza irregular do ritmo do filme. Nem todos os momentos fluem com a mesma consistência – o que pode ser uma escolha estilística de Baker, que usa esses altos e baixos para nos levar até um final desconcertante. Assim, o desconforto no desfecho não é um erro, mas sim uma provocação calculada que nos força a refletir sobre as histórias que escolhemos consumir e as que preferimos evitar.
Anora é uma homenagem à classe trabalhadora, uma história crua e impiedosa sobre o poder, a riqueza e os limites do amor. Baker nunca desvia o olhar da humilhação silenciosa que estas personagens enfrentam, rebaixando-se em nome de um oligarca distante e indiferente à sua existência. É um filme que não só ressoa com a sua sinceridade brutal, mas que também mostra que está pronto para continuar a deixar marca nas próximas cerimónias de premiação, com múltiplas indicações em categorias de peso.