Ammonite (2020)

de Pedro Ginja

Os amonites constituem um grupo extinto de moluscos cefalópodes que surgiram no período Devónico e se extinguiram no final do Cretácico, juntamente com todos os grandes dinossauros. Para um leigo, esta informação será porventura demasiado específica mas, no filme, é ela que move a protagonista da história, Mary Anning (Kate Winslet). Anning foi uma paleontóloga, negociadora e coletora de fósseis, natural de Lyme Regis, no sudoeste de Inglaterra e ficou mundialmente conhecida pelas suas importantes descobertas no estudo dos dinossauros. Por ser mulher e dissidente (não professar ou seguir o Anglicanismo) nunca pôde participar plenamente da comunidade científica do séc. XIX, que era composta na sua quase totalidade por homens Anglicanos, e tão pouco receber crédito pelas suas contribuições e descobertas.

Francis Lee, de novo argumentista e realizador, após o excelente God’s Own Country (2017), retrata a vida de Mary Anning de modo livre e em torno de uma suposta relação amorosa com Charlotte Murchison (Saoirse Ronan). Aquando da estreia instalou-se a polémica com a família Anning, por supor uma relação homossexual entre as protagonistas, quando não há qualquer indício histórico de tal ter acontecido. Este facto, segundo a família, denegriu a sua memória e menosprezou a sua real contribuição para a ciência, num período difícil para uma mulher singrar e se impor, enquanto Francis Lee retorquiu com “Mas não posso eu ver essa pessoa dentro de outro contexto?”. 

É por isso injusto atacar Francis Lee de se aproveitar de uma figura histórica, na sua sexualidade, quando ele é um ardente defensor da comunidade Queer. A sua sensibilidade está em evidência logo nos primeiros cinco minutos do filme, em que mostra a posição das mulheres num mundo dominado pelo patriarcado, a apropriação da investigação e descobertas de Mary Anning e as condições difíceis de trabalho no mundo da geologia sem uma única palavra. Inclusive, os primeiros sinais de uma suposta relação surgem só após uma hora de filme. O foco do filme está em Kate Winslet e na criação de uma personagem forte, inteligente mas amargurada com a vida e com a pressão da mãe (Gemma Jones) nas suas opções pessoais, numa relação pontuada com silêncios e olhares desiludidos. Pormenores que passam despercebidos mas que definem as personagens são uma constante ao longo do filme, como a paleta de cores dos vestidos de Charlotte (Ronan) – de preto, no início, para cores neutras a meio e terminando com cores vivas no final do filme. É mesmo pena não haver tempo para Charlotte definir a sua personagem com o tempo e dedicação que Mary Anning claramente tem. Se Saoirse Ronan não consegue, muito menos consegue o resto do elenco com excepção de Gemma Jones, no papel de mãe de Mary Anning, que faz tanto com tão pouco tempo.

É inevitável compará-lo com Portrait de la Jeune Fille en Feu (2019), por ambos abordarem uma relação homossexual num tempo em que tal era visto como uma abominação e pecado, mas este Ammonite não consegue o que o anterior conseguiu, o equilíbrio entre as duas amantes e o crescendo perfeito de emoção/tensão terminando num final notável, enquanto Ammonite fica pelo mediano, nunca atingindo o êxtase do anterior.

Francis Lee consegue novamente mostrar toda a sua sensibilidade, subtileza e atenção ao pormenor no tratamento de uma referência no mundo da geologia, Mary Anning, do qual pouco se sabe para além das suas descobertas. Essa liberdade de Lee permite a Winslet encarnar Mary Anning como uma mulher forte e frágil em igual medida, num trabalho de colaboração notável. É pena o desequilíbrio e falta de dedicação semelhante com a personagem de Saoirse Ronan, prejudicando a construção de uma relação amorosa verosímil e culminando num final desapontante.

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