Amadeus (1984)

de Guilherme Teixeira

Internado num manicómio depois de tentar cometer suicídio, Antonio Salieri (F. Murray Abraham) desabafa com um padre sobre as suas ambições no mundo da música e, pelo meio, conta a rivalidade que travou com nada mais, nada menos: Wolfgang Amadeus Mozart (Tom Hulce).

Miloš Forman era um realizador que parecia compreender tudo aquilo que atormenta a alma humana. Dando alguns exemplos, com o filme One Flew Over the Cuckoo’s Nest (1975), Forman argumenta a insanidade e como essa se relaciona com a necessidade que o ser humano tem em permanecer em constante equilibro entre as regras e a individualidade para, assim, não correr o risco de, por um lado, perder a sua liberdade e, por outro, perder-se na simples anarquia. Com Man on the Moon (1999) demonstrou a inevitabilidade da solidão para certas pessoas que olham para o mundo de uma maneira muito própria e como essas pessoas são necessárias para abrir horizontes aos comuns dos mortais…mesmo que isso só aconteça depois dessas mesmas terem partido. Em Amadeus, a ganância, orgulho, ego, ressentimento, percepção de sucesso e legado são postos à prova no grande ecrã e, felizmente, através das mãos deste realizador.

Amadeus foi o grande vencedor na gala dos Oscars de 1985, recebendo oito estatuetas, nomeadamente nas categorias de melhor filme, realização, argumento adaptado e melhor ator principal – nesta última categoria teve dois nomeados, sendo F. Murray Abraham o vencedor. É óbvio que nem sempre os Oscars servem de atestado de qualidade, porém este é daqueles filmes que ainda deixa a academia transpirar um pouco de credibilidade.

F. Murray Abraham está enorme no papel. É impressionante como consegue, durante boa parte do tempo, convencer a audiência que as suas ações são justificadas, afastando-se, assim, da maldade e adiando o julgamento moral que acaba por inevitavelmente chegar. Já Tom Hulce, com uma atuação mais solta, consegue transparecer aquela ingenuidade e até infantilidade de Mozart, sem nunca retirar a credibilidade da sua genialidade. À medida que o fim se aproxima o público é atraído, sem perceber, para a sua espiral, o que eleva a sua atuação e torna a história, como um todo, ainda mais trágica. Isto, aliado a alguns momentos chave onde o filme permite perder um pouco da sua subtileza, torna a experiência verdadeiramente assombrante, mais do que muitos filmes de terror.

De notar ainda a fotografia que tanto consegue explorar a nobreza dos lugares como também consegue, sem qualquer esforço, tornar estes espaços bastantes claustrofóbicos, ao fechar os ângulos dando um ar alucinógeno, o que também é impulsionado por uma paleta de cores quentes que acentua a ideia de doença e desconforto.

É notável a opção de construir uma espécie de biopic de uma figura tão relevante através da perspectiva do seu suposto maior rival, até porque todos conhecem Mozart, sendo natural que a audiência não precise muito para conceder a sua atenção a esta figura. Porém, mais difícil é acompanhar e simpatizar com alguém que não só o quer mal, como atua ativamente para que o nosso herói não prospere. No final das contas, Forman não só constrói um antagonista que é impossível não compreender as suas motivações e até simpatizar (nem que seja somente um pouquinho), como de quebra ainda cria uma jornada de herói riquíssima na sua tragédia.

Os aspectos mencionados supra – ego, orgulho, ressentimento – são personificados na personagem de Salieri, que acaba por ser o mote do filme, ao passo que o “sucesso” e “legado”, apesar de serem focos importantes na história, surgem mais como consequências inevitáveis, quase como danos colaterais, mas que atingem o coração. 

É difícil desprezar completamente este personagem devido ao facto do próprio público compreender que, mesmo que não conseguisse tramar alguém de forma tão vil, existe algo dentro de nós que sabe que num universo paralelo, onde as estrelas alinharam-se numa certa forma, essa nossa versão consegue cometer certas atitudes semelhantes às de Salieri, neste filme. Trata-se do medo natural que qualquer pessoa tem de ser ultrapassada e de ver os seus objetivos a escorregarem pela ponta dos dedos e ir parar a alguém que reconhecemos ser de facto melhor que nós, ou mesmo que não o seja, represente algo que nos faça sentir assim. É bonito acreditar que a maioria das pessoas simplesmente seguiria a sua vida, mas a natureza humana pende mais para entrar no modo sobrevivência, porque, no fundo, somos todos um bocadinho Salieri, tanto na vida profissional como pessoal. Todos procuramos aprovação, e um dos argumentos mais geniais feitos neste filme é quando a obsessão se mistura com a admiração ao ponto em que nada mais importa que, ironicamente, a aprovação daquele que tentamos destruir. O que se há de fazer? O ser humano é um bicho complicado.

Agora, é importante perceber que sentir-se um pouco Salieri não é necessariamente mau, até por motivos de autopreservação, porém torna-se um problema quando atuamos ativamente para proteger algo que prejudica de tal forma aqueles que estão ao nosso redor que, ao fim e ao cabo, acaba por nos magoar. E, de certa forma, é isso que acontece ao nosso narrador. À medida que a sua vida profissional avança, o seu “eu” despedaça-se até chegar a um ponto em que são demasiados pedaços sacrificados para poder continuar. Impressionante como a realização de que existe espaço para todos chega sempre demasiado tarde.

E é daqui que surge o tal dano colateral – o legado (intrinsecamente a percepção de sucesso). De que vale o legado? Salieri teve uma vida bem-sucedida, mas passados quase duzentos anos já são poucos aqueles que o conhecem e diria que são menos aqueles que ouvem a sua música. Já Mozart, apesar de ter tido um começo de carreira brilhante, acabou na desgraça, porém, passados quase duzentos anos, existe um número incontável de pessoas que ouvem a sua música. Tendo perfeita noção de que a discussão principal gira em torno dos elementos mais egoísticos, esta questão final foi a cereja no topo do bolo e aquilo que me agarrou a esta longa-metragem, pois, se pensarmos de um certo prisma, o legado de Mozart pode ter servido como uma forma da humanidade recompensar o injusto tratamento que lhe foi dado, concedendo vida eterna através da memória das suas obras. Todavia, de um certo modo, é capaz de ter sido das coisas mais sádicas que se pode ter feito, pois, no fim de contas, o que vale uma fruta que nunca será colhida?

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