Amadeo de Souza-Cardoso continua um eterno desconhecido, mesmo no seu país. As circunstâncias históricas (eclosão da 1ª Guerra Mundial) e um país pouco preparado para a sua arte, ditaram a sua sorte, de nunca ter o devido reconhecimento, em vida, do enorme talento e de ser um dos grandes impulsionadores da arte futurista/moderna do país e, arrisco dizer sem hesitação, do mundo. Um homem muito à frente do seu tempo e “preso” na sua terra do coração – Manhufe – onde casou e fixou residência com Lucie Pecetto, mas com a cabeça em Paris e Nova Iorque, e o sonho de mostrar a sua arte ao mundo. É, para este momento e lugar, que Vicente Alves do Ó leva o espectador e nos mostra quem é Amadeo, um dos maiores pintores portugueses do ínicio do século XX.
Escrito e realizado por Vicente Alves do Ó e com a produção da Ukbar Filmes, chega finalmente onde merece estar: a sala de cinema. Depois das filmagens em 2019, tinha a suposta estreia planeada para Novembro de 2020 mas a história mundial e um tal de COVID-19 tinha outros planos. Para maximizar o potencial do filme optou-se por esperar até 2023 para termos a sua estreia nas salas de todo o país.
A aposta neste filme é, claramente, grande e logo se vê o cuidado colocado na produção e na recriação de época há mais de 100 anos. O orçamento foi superior a 1 milhão de euros, coisa rara pelo nosso país, e permitiu a reprodução fidedigna do guarda-roupa e cenários de um tempo há muito desaparecido. Um excelente trabalho da equipa de Artur Pinheiro e Joana Cardoso, sem dúvida a aproveitar cada tostão, com um grande destaque para o trabalho realizado na famosa exposição de Amadeo nos jardins do Passos Manuel, no Porto. Não estão sozinhos nos elogios a dar a esta produção, mas o maior destaque terá de ser para o inspirado trabalho de fotografia de Rui Poças. O uso de luz natural ou artificial, presente na cena, é de um verdadeiro artista e de uma inteligência visual soberba. Varia de acordo com o que a cena pretende transmitir, por exemplo, em interiores é usado muito a luz natural vinda de janelas ou de velas/candeeiros colocadas estrategicamente para iluminar apenas o que quer mostrar, denominado de chiaroscuro. Era uma técnica de pintura usada nos tempos renascentistas para reforçar a aura de dramatismo e dar corpo às personagens que retratava e aqui dá um ar de grandiosidade e mistério a um homem “fora do seu tempo”. Mas não se fica por aqui e, nos exteriores, abusa das grandes angulares para mostrar a vastidão da “prisão” de Amadeo mas também o grande amor por esta terra que não o compreende.
Amadeo aparece, muitas vezes, a caminhar através de túneis, nos planos mais apertados, ou escondido parcialmente atrás de objectos, no escuro e na solidão, um homem numa espiral de isolamento e desespero. Apesar de ser esse o sentimento dominante, em excesso, pode dizer-se, existem pequenos “oásis” de esperança espalhados pelo filme como o período de descoberta artística de Amadeo em Paris, com ênfase em luz de várias tonalidades e de um ambiente festivo nas tertúlias artísticas. Queria-se ver, muito mais, deste período da vida de Amadeo em que se formou como artista e, infelizmente, o argumento resume esta parte da sua vida apenas a uma festa com a presença de tantos ilustres artistas como Modigliani, Picasso, Apollinaire, Delaunay, entre outros, provavelmente com receio de Amadeo perder destaque com tantas “estrelas” da arte mundial.
Tal não seria possível com Rafael Morais a encarnar a persona de um homem intemporal mas preso no tempo e no espaço de uma casa de Manhufe. Nos olhos de Rafael Morais vemos o crescente desespero por estar a “estagnar”, sem perspectivas de mudança, mas também o intenso amor por Lucie Pecetto (Ana Lopes), também ela a partilhar a angústia de um artista com medo de ser esquecido. Falta sentir um pouco dessa raiva e uma maior intensidade nos breves momentos de felicidade que pontuam o argumento, e que teriam dado um maior destaque aos momentos dramáticos dominantes. É um filme para Rafael Morais brilhar mas Ana Lopes consegue espelhar a força de uma grande mulher por detrás da sua fragilidade física e sensibilidade de artista, constantemente evidenciada no argumento, apesar da parca informação histórica sobre quem era Pecetto na realidade. Não há espaço ou tempo para a criação de muitas mais personagens, mas todo o elenco de secundários é de grande qualidade nas poucas cenas disponíveis para cada, com destaque para Eduardo Vianna, o eterno companheiro de Amadeo nas lides artísticas interpretado por Ricardo Barbosa e ainda Raquel Rocha Vieira, no papel de Helena, uma das irmãs de Amadeo. Temos ainda de falar, e com muita saudade, de Eunice Muñoz e de Rogério Samora a surgirem, em todo o seu esplendor, pela última vez no grande ecrã.
Breves notas sobre o som, sempre imaculado e marcante, principalmente na reta final, onde a famosa gripe espanhola entra em cena. Sem dúvida os paralelos com a actual pandemia são relevantes, mas esse fascínio de Vicente Alves do Ó pela doença “retira vida” do homem que queríamos celebrar, mesmo que a vida lhe tenha trocado as voltas. Na música algumas opções desiludem com a introdução de um tema rítmico, de inspiração modernista, mas que distraí do que se passa no ecrã enquanto outras deslumbram como o uso de uma ópera de Puccini a servir de transição entre momentos marcantes e fazendo parte integrante da narrativa, mesmo quando a ária já terminou e apenas fica o som do “silêncio” de um disco a girar na grafonola.
Amadeo deslumbra-nos visualmente e dá a conhecer o homem por detrás de um dos mais influentes e, simultaneamente, desconhecidos artistas portugueses do Séc. XX. Vicente Alves do Ó é o maestro de serviço e conduz a orquestra com a segurança e certeza no que quer revelar. Venha o próximo retrato de outro grande artista português. Almada Negreiros talvez?