All We Imagine as Light (2024)

de Rafael Félix

Luz. A razão do título só se desvenda nos seus passos finais, porém ela lá está, clara e luminosa desde a narração de abertura de All We Imagine as Light onde pairamos por Mumbai, vemos as gentes e o frenesim quotidiano, as bancas de fruta contra paredes de cimento e motorizadas, buzinas e burburinho a preencher o ar. “Vivo aqui há 25 anos e continuo a sentir que não sou daqui” diz-se nos primeiros frames do novo filme de Payal Kapadia, num olhar sobre a cidade indiana através dos amores, frustrações e desapontamentos das suas gentes.

No centro está Prabha (Kani Kusruti), enfermeira e, como as restantes personagens, chegada de um vilarejo longe de Mumbai à procura de melhor. O marido emigrado na Alemanha (casamento que resulta de uma união arranjada), sem dar notícias há mais de um ano, desparecido, não se sabe se vivo se morto, até que vinda de terras bávaras chega uma máquina de cozer arroz. Sem bilhete, nota ou assinatura. O único sinal de vida deste vem na forma de um eletrodoméstico. A desilusão de Prabha contrasta com a da jovem Anu (Divya Prabha), a viver uma paixão de inocência quase adolescente com Shiaz (Hridhu Haroon), em que toda ela é sorrisos e beijos secretos num amor que não é seguro para nenhum: ela hindu, ele muçulmano. Entre elas, Parvati (Chhaya Kadam), colega das duas na clínica e a ser despejada da casa onde viveu – e recentemente enviuvou – durante mais de 22 anos e a planear voltar para a aldeia onde nasceu.

Três mulheres, três gerações, três forasteiras. Fala-se de Mumbai como uma cidade de passagem, independentemente do tempo que por lá se fica, onde nada tem raiz, a não ser as que puxam aqueles que por lá passam de volta para a sua origem. Diz-se que em Mumbai “não te podes queixar mesmo que vivas na sarjeta”. O socio-realismo indiano vem aqui e ali ao de cima quando confrontados com a miséria normalizada que é o dia-à-dia da cidade, porém, Kapadia vai por outro caminho: um mais romântico, sem necessariamente romantizar estas situações, e que prefere tratar com naturalidade a adaptabilidade e solidariedade dos seus cidadãos em vez de tentar nobilitar atos de amabilidade fraterna. A quase desvalorização destes momentos dão cores distintas a All We Imagine as Light, que variadas vezes roça o documental, antes de se libertar fugazmente na fantasia, seja ela real ou imaginada. Pela câmara de Ranabir Das, alguns instantes de dois corpos em efusão, no meio de uma selva à beira-mar parecem de tal forma de outro mundo que custa a acreditar que a visão é tão real e carnal como é.

Aquele dito sobre Mumbai não se refere somente às condições materiais da existência. Prabha agarra-se à noite a um eletrodoméstico para se lembrar de um homem que pouco amor lhe tem e resiste a uma paixão viva por um compromisso decrépito com alguém que, em tudo menos em corpo, está morto. A sua força confunde-se com impassividade, ainda que pontuada de humores tempestivos quando encarada com as fantasias adolescentes e apaixonadas de Anu. É sinal de uma força desesperada por se agarrar a uma esperança ténue de um regresso adiado. A esperança é uma coisa bonita, mas no mundo real e de Kapadia, perigosa e viciante. Este género de dramas sociais não é particularmente cheio de esperança por algo melhor ao virar da esquina, basta pensar na totalidade da filmografia de Ken Loach e o quão derrotista consegue ser. Ainda assim, o filme da realizadora indiana olha para este conceito de uma forma distante, como se não o conhecesse e fosse uma entidade desconhecida para os seus protagonistas; mesmo Prabha confunde o dever com esperança quando acredita que o marido vai voltar. A esperança não entra nestas contas, nem das de Anu sobre o seu futuro com Shiaz ou nas de Parvati se irá manter a casa onde sempre viveu. O que há, em vez disso, é a beleza ou a crueldade do presente e All We Imagine as Light é um filme único por isso: não glorifica as dificuldades, não enfatiza a nobreza dos atos. Evitam-se pontos da narrativa que seriam previsíveis e tomam-se caminhos diferentes, que parecem honestos e sentidos, mesmo quando os sonhos e as fantasias se intrometem, intermitentemente, pela trama.

As luzes de Mumbai e as luzes a que se refere All We Imagine as Light talvez sejam mais comparáveis àquela que condenou Ícaro. É uma carta sobre resistência para aqueles que olham para a frente sem olharem para longe, para o povo de Mumbai que mesmo quando não tem a garantia do amanhã, prepara-se hoje para o dia que vai ser, com alegria e tristeza, em pesos iguais. Não se trata do “espírito de Mumbai” e da resiliência dos seus, mas sim da ausência de alternativas para estes que não seja continuar em frente, a crueldade cosmopolita tornada cinema. É um filme que se permite a todos os sentimentos, juntos e indistinguíveis nos olhos de Parvati, Prabha e Anu. E nos nossos também.

4.5/5
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