É com uma dose generosa de liberdade artística que Andrew Haigh adapta aqui o romance de 1987 escrito por Taichi Yamada. All of Us Strangers transporta a ação do texto original para Londres, onde entramos num edifício sem sinal de vida além daquele que vem de dentro do apartamento de Adam (Andrew Scott). Um guionista solitário a tentar escrever um argumento sobre os seus pais, falecidos 30 anos antes num acidente. Alguém toca a porta. É um dos vizinhos, Harry (Paul Mescal), de garrafa na mão e álcool no sangue. A atração entre os dois é gritante, mas Adam recusa os avanços e fecha a porta. Na manhã seguinte, Adam viaja para a sua terra natal e visita a casa onde os pais um dia tinham vivido e, de alguma forma, estes estão lá, com a mesma exata aparência daquela que tinham 30 anos antes e recebendo-o de braços abertos e a querer saber tudo aquilo que tinha acontecido ao filho desde o seu desaparecimento, como se nada tivesse acontecido.
É mais difícil de explicar do que compreender All of Us Strangers. Sonho, realidade e criação artística misturam-se e sobrepõem-se enquanto Adam fantasia sobre a relação que podia ter tido com os pais e experiencia o amor como se fosse a primeira com Harry. Os “estranhos” do título alude para uma existência particular, o sentimento de ser um estranho no meio de estranhos, uma intimidade contraída e contida até abrir brechas dolorosas que não têm como não se transferir para outras esferas da vida pessoal. Adam está sozinho. Diz que os amigos se mudaram todos para fora de Londres para constituir família, portanto de que serve isso para “pessoas como ele”. A homossexualidade deste não é razão da sua solidão, segundo o próprio pelo menos, quando a mãe (Claire Foy) pergunta “é uma forma solitária de viver, não é?”, e no entanto, a forma como o expressa, o olhar embaraçado, as pausas entre as palavras e o sorriso forçado, deixam ver para dentro das brechas que Adam deixou abrir, e sim, não é a sua orientação sexual que define a sua solidão, e sim a crueldade da vida quotidiana, desde a ausência dos pais ao desalento de não encaixar que criou a bolha onde este hoje vive, isolado, num apartamento a imaginar conversas que queria ter tido com os seus entes queridos. Na mesma conversa, quando Adam explica à mãe que as coisas hoje são diferentes, que a aceitação é diferente, a repetição da frase e a falta de convicção na dicção das sílabas, deixam dúvidas sobre a sua própria convicção se, agora, realmente é tudo assim tão “diferente”.
Haigh, num filme, abarca um sem número de temas, agregando-os de tal forma orgânica que deixam de se distinguir uns dos outros, o que, nas mãos de qualquer outro artística, facilmente daria a sensação de estar a tentar demasiado. A violência acidental na relação parental, diferenças geracionais da comunidade queer, luto, memória, desejo e expressão artística. Tudo isto trazido pelas mãos de quatro atores no primor das suas capacidades à mercê de uma câmara que, pelo meio das suas explosões de azul e púrpura, também não se sabe decidir o quão real é o que estamos a ver.
A verdade é que importa pouco. Mesmo com algumas decisões menos bem conseguidas e um final que fica ligeiramente aquém daquilo que havia sido construído até então, All of Us Strangers carrega uma universalidade impossível de negar, tocando os nossos lugares mais íntimos, quebrando-nos as forças nos momentos em que algumas palavras carregam mais brutalidade que qualquer violência física poderia e lembrando que reconciliar-nos com o passado é essencial, ainda que, como responde Harry quando Adam lhe diz que não tem de lamentar a morte dos pais destes, pois já passou muito tempo, “isso não importe muito”.