Alcindo (2021)

de Rafael Félix

(Filme em exibição no Festival Política em Loulé)

Estreado em outubro de 2021 no DocLisboa, Alcindo tem vindo a ser exibido um pouco em todo o lado, desde o auditório da Faculdade de Ciências até à Associação de Moradores do Bairro do Zambujal: a necessidade e urgência do seu assunto assim o obrigam. O documentário da responsabilidade de Miguel Dores e Beatriz Carvalho, centra-se nos acontecimentos ocorridos na noite de 10 de Junho de 1995, quando um grupo de skinheads invadiu a noite lisboeta e violentou 11 indivíduos de raça negra, e um deles, Alcindo Monteiro, foi brutalmente assassinado em plena Rua Garrett.

Falar de Alcindo é falar sobre um problema tão antigo como o tempo em Portugal. Um problema persistente também. Numa reflexão inicial, sabemos que o processo de filmagens se deu à sombra do que aconteceu com Giovani, Cláudia Simões, Bruno Candé e George Floyd e é-nos dito: “um documentário que começou por ser sobre uma memória passou a ser um documento do presente”. Este documento do presente é depois construído de trás para a frente.

Começamos por conhecer Alcindo, através da sua família, do seu patrão e dos seus amigos. Gentil, cheio de vida e com paixão por perder o seu corpo na pista de dança, conhecer alma por trás do símbolo torna-se uma necessidade quando nos lembramos que, para se ter iniciado uma nova vaga do movimento antirracista, houve também uma mãe que perdeu um filho, sobrinhos que perderam um tio e um mundo que perdeu um espírito tão inocente e sincero que teve a capacidade de, com o seu desaparecimento, revoltar um país que nunca mais seria o mesmo.

Aquele 10 de Junho, apelidado por Alcindo como “o dia da incoerência portuguesa”, serve então como ponto de partida para uma história que tem o seu início séculos antes. Um passado colonial banhado a sangue, escravatura e etnocídio, e que ainda hoje arrasta ilustres ideias de glória, e as ruas que rodeiam o local onde Alcindo sucumbiu ao ódio, estão carregadas com os nomes de vanguardistas e figuras de destaque do imperialismo português e que continuam a ferir aqueles que sempre feriu. Pelo caminho, Alcindo coloca um espelho à frente de todos, sejam eles transeuntes apáticos ou instituições governamentais. Obriga-os a encarar a sua conivência e incongruência para um racismo sistémico que é detetável a qualquer pessoa que tenha acesso a um livro de história ou ao Youtube, lembrando-nos que Fernando Medina que recordou o aniversário da morte de Alcindo, é o mesmo presidente da câmara municipal de Lisboa que inaugurou uma estátua de Padre António Vieira a evangelizar “os selvagens”, ou os diferentes casos de violência policial que inundaram as manchetes durante uns dias, apenas para horas depois já não serem mais que meras lembranças perdidas no meio da avalanche de ruído que é a imprensa generalista do Séc. XXI.

Esta imprensa também vê relembrado o seu papel no apagamento ou manipulação da ideia do Portugal racista, com uma dose pouco saudável de paternalismo e condescendência para com aqueles que durante anos se têm visto marginalizados pelas instituições e pelo Estado (o ex-ministro Dias Loureiro tem um lugar de destaque em Alcindo), como um veículo do país dos brancos costumes para perpetuar a utopia de um Portugal que é um país de “irmãos” e não um país de “opressores”. Esta é a imagem que Portugal quer ter de si mesmo. O mesmo Portugal que mais facilmente conhece o nome de Mário Machado do que o de Alcindo Monteiro.

É por isso que o trabalho de Miguel Dores, Beatriz Carvalho e toda a equipa por trás deste documentário tem aqui um trabalho tão importante. A memória é maleável e falível, e são filmes como Alcindo que permitem preservar no tempo as lições que o caso Alcindo Monteiro nos ensinou e as máscaras que caíram neste processo. Máscaras essas que ainda hoje são usadas nalgum espaço político que grita que “Portugal não é Racista”, mas nunca conheceu a realidade que Bruno Candé conheceu em Julho de 2020 ou que Giovani conheceu em Dezembro de 2019. Alcindo também é para estas pessoas, para as suas máscaras e para as suas ideologias.

Alicerçado numa pesquisa e entrevistas cuidadas e com o caso Alcindo Monteiro sempre no seu núcleo, Alcindo vai além da descrição grotesca da tragédia que foi aquele 10 de Junho, usando o ódio que caiu sobre este cabo-verdiano como ponto de partida para espreitar debaixo do véu sangrento e antigo do racismo em Portugal, nunca esquecendo da vida que se perdeu pelo caminho, do rapaz gentil e educado que só queria dançar pelo Bairro Alto adentro.

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