Diz-se que as melhores obras de arte são as mais pessoais. O ato de traduzir o íntimo e próprio em universal, de transformar angústias e ansiedades sem cara e sem nome em algo tangível e corpóreo – eis a magia da produção artística.
Em Aftersun, sentimos que mergulhamos, como Sophie (Frankie Corio) mergulha nas águas quentes do mar, no subconsciente da realizadora estreante Charlotte Wells. Entre clarões instantâneos, vídeos domésticos, e uma subjetividade muito própria, Wells constrói um filme que é tanto memória como é cápsula temporal; onde a verdade não é absoluta, mas sim aquela que é humanamente experienciada, em que pequenos detalhes, à primeira vista inconsequentes, ficam para sempre connosco, enquanto que importantes acontecimentos por algum motivo se desvanecem.
Paul Mescal, nomeado ao Oscar de Melhor Ator, dá vida a Calum, o pai carinhoso de Sophie, com um lado sombrio do qual somente apanhamos vislumbres. Os dois passam férias num resort na Turquia, e enquanto Sophie explora o mundo fascinante e assustador da pré-adolescência, o seu pai tenta dar o melhor de si, independentemente dos demónios contra os quais batalha. A linha temporal principal, passada no início do milénio, é ocasionalmente interrompida por cenas do presente protagonizadas pela versão já adulta de Sophie (Celia Rowlson-Hall).
Enquanto narradora autodiegética da história, Sophie permite-nos criar, como ela, uma imagem incompleta do seu pai. Uma astuta menina de onze anos, Sophie não percebe ainda bem as oscilações do estado de espírito de Calum, mas está perfeitamente ciente delas, por muito que o pai as tente esconder. As cenas em que a protagonista não está presente quase parecem uma tentativa por parte da sua versão adulta, agora com outra perspectiva das coisas, de encher os vazios daquela fatídica viagem. As linhas entre o verdadeiro, o recordado, e o imaginado esbatem-se naquela que é uma das mais resplandecentes representações já criadas do ato de lembrar.
O significado do que vemos é inteiramente criado por nós pois, apesar de óbvio, nunca nada é explicitamente abordado em Aftersun, da mesma forma que na vida muitas vezes preferimos não falar dos assuntos que nos assombram. Os dois lados contrastantes de uma infância sonhadora e corajosa e uma adultez desiludida e perdida agarram-nos pela garganta, quando Sophie grava o pai com entusiasmo, recebendo apenas vergonha em troca, ou quando este a deixa no palco a cantar “Losing My Religion” no karaoke sozinha.
Nos intervalos do conflito principal, acompanhamos a descoberta sexual de Sophie que decorre da mesma forma discreta, mas incrivelmente completa, no resto do filme – imperceptível até, talvez, para quem nunca tiver experienciado a mesma intimidante curiosidade por pessoas do mesmo género, quando tudo à sua volta é tão agressivamente heterossexual.
A minuciosa e silenciosa prestação de Mescal é fulcral para o sucesso de um argumento tão ambicioso, criado sobre os pilares de momentos nas sombras, nas costas, escondidos, e mascarados. Corio é brilhante enquanto tenta decifrar o seu estranho, mas inteiramente terno pai, revelando no processo uma maturidade triste de uma infância roubada.
A estrutura, escrita, e realização de Aftersun têm, assim, o dom de transportar quem o assiste para a mente da sua criadora, ainda que muito do que estamos a ver pareça diretamente colhido das nossas próprias vidas e memórias. Wells cria a tal experiência universal a partir do individual, num filme que visualmente pode ser tão bonito e rosado quanto as férias em família da nossa infância, mas que aos poucos se transforma numa das mais perturbantes experiências cinemáticas que vivi. No final, depois dos créditos correrem o ecrã, Aftersun permanece em nós como o ar lânguido, húmido e peganhento do Verão.
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