After Yang (2022)

de Rafael Félix

Faz 10 anos que Kogonada lançou o seu primeiro vídeo no YouTube. Breaking Bad: POV era um ensaio sobre as composições da série com mesmo nome e foi apenas o princípio daquilo que viria a ser um dos canais mais importantes da análise cinematográfica, a par, por exemplo, do já inativo Every Frame a Painting, de Tony Zhou. A sensibilidade peculiar que mostrava nesse período, e que transportou de forma extraordinária para o brilhante Columbus (2017), está novamente presente na pérola que é After Yang.

Yang (Justin H. Min) é um techno-sapien, um ser robótico com características quase humanas, que foi adquirido por Jake (Colin Farrell) e Kyra (Jodie Turner-Smith) para funcionar como um irmão mais velho para a sua filha adotiva, Mika (Malea Emma Tjandrawidjaja), e para a aproximar da sua herança cultural chinesa. Certa noite, Yang deixa simplesmente de funcionar, deixando um vazio profundo na vida da família.

Há leituras algo cruéis que se podem fazer de After Yang. Algumas delas até podem ser justas. Porém, para estas leituras funcionarem, teriam de ignorar cabalmente o facto de After Yang ser de uma generosidade e beleza demasiado raros para serem menosprezados. Tal como em Columbus (2017), todas as personagens falam num tom ténue e pausado como se houvesse uma necessidade permanente de respeitar o espaço de outrem, seja ele o cônjuge ou o mecânico que está a tentar vender teorias da conspiração em troca de peças do robô da família. Kogonada transpira uma paixão voraz pela humanidade e para com sua potencialidade para ser gentil no meio até dos momentos mais dolorosos. No seu núcelo, After Yang é apenas a história de um pai a fugir constantemente da inevitabilidade de ter de explicar à filha que a beleza da vida se prende com o facto de ser frágil e temporária, e que talvez de terá de aprender a viver sem Yang.

No entanto, o filme baseado na short story Saying Goodbye to Yang do livro de Alexander Weinstein Children of the World (2016) vai muito mais além do que explorar a natureza do luto quando se é demasiado novo para entender o que é a morte. Enquanto Jake percorre a cidade para tentar recuperar Yang, levando-o por entre lojas para ativar garantias ou museus dedicados aos techno-sapiens, é confrontado com a própria humanidade do robô que é vislumbrada com o maior respeito por parte do realizador. Quando, num flashback, Yang questiona Jake sobre o porquê de este adorar chá e receber uma resposta desconjuntada, mas sentida, Yang diz “quem me dera poder sentir algo mais profundo em relação ao chá”. Esta resposta vai ao cerne de uma discussão filosófica profunda, não só sobre o futuro da inteligência artificial do ponto de vista ético-moral, mas também mergulha sobre aquilo que nos torna humanos, sejam as nossas paixões irracionais promovidas por um documentário de Werner Herzog ou o amor incondicional por um ente querido que acompanhámos durante uma vida inteira. A senciência de Yang é uma hipótese que After Yang coloca sem grandes complexos, mas a forma como a analisa através das suas memórias e da história que construiu, através da natureza que observou e através das vidas que tocou, até ao dia em que o seu núcleo desiste de funcionar, é de uma sensibilidade tão graciosa e tão plena de amor por tudo o que o rodeia, que transforma um filme num poema sobre a beleza da vida ser feita da dualidade entre efémera e eterna.

Esta sensibilidade está presente por todo o universo futurístico, na sua construção de cenários ou do guarda-roupa que misturam a modernidade com a tradição, e com toques de tecnologia tão pontuais e orgânicos que se torna impossível distinguir imediatamente aquilo que não corresponde à realidade que hoje vivemos. A naturalidade presente na arquitetura visual de After Yang é um reflexo fiel da forma como o realizador sul-coreano atenta ao detalhe mais ínfimo de forma a torná-lo praticamente invisível e irrelevante, deixando assim a sua história sobre luto, amor, humanidade e herança cultural, brilhar num ambiente que é ao mesmo tempo alien e profundamente real.

O mais recente trabalho de Kogonada é mais denso do que a simplicidade aparente das suas personagens. Este passeia-se por questões sobre a parentalidade de uma criança adotada e a forma como esta se mantém ligada à sua cultura de origem; sobre a forma como olhamos com desconfiança para aqueles que nos parecem diferentes ou que amam de uma forma além da nossa própria compreensão; sobre a natureza da vida, da morte e do que é ser humano. Com tudo isto a acontecer, é enternecedor perceber que, no fundo, After Yang nunca se esquece do seu fascínio pelo mundo que habita e se mantém otimista sobre a capacidade que as pessoas têm de serem simplesmente boas. Num mundo que nos obriga todos os dias a ser cínicos, talvez um pouco de otimismo seja exatamente aquilo que precisamos.

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