“What can I say? I like playing with my food”.
Nos dias de hoje é usual ter um filme de terror a estrear no mercado todas as semanas – coisa impensável há duas décadas atrás. Num mercado saturado de filmes de terror, ser surpreendido é cada vez mais difícil mas existe muito talento a encontrar, novas maneiras de inovar e de mostrar novas ideias. Poderia dar inúmeros exemplos como Ari Aster, Ti West, Jennifer Kent ou Jordan Peele como respeitados realizadores cujas carreiras assentam no terror mas extravasam, e muito, os seus limites. De fora de Hollywood os nomes surgem, também, muito facilmente como Kyoshi Kurosawa, Panos Cosmatos, Takashi Miike ou Julia Ducournau e também eles partilham essa vontade de quebrar os limites do terror e expandir, no futuro, ainda mais as suas possibilidades.
A dupla Mat Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, que poderá não ser tão reconhecível como os anteriormente citados, captou a atenção dos aficionados do terror com Ready or Not (2019), um surreal jogo em que uma família recebe a sua nora, no dia do casamento, com uma perseguição até à morte – é tradição dizem. A combinação de humor e terror, bem regado com doses copiosas de sangue, abriu-lhes as portas de um das mais famosas franchises de terror da história – a saga Scream – com os seus dois mais recentes capítulos. Abigail é o seu mais recente projecto e retrata a história de uma menina que é raptada por um grupo de criminosos profissionais em busca de um trabalho de rotina. Enquanto esperam pelo dinheiro do resgate, numa mansão isolada, acabam por perceber que são eles a presa de uma vampira, escondida num corpo de uma pequena e “inocente” bailarina.
O cânone dos vampiros está dependente de muitas regras pré-estabelecidas, e Abigail pretende desde muito cedo brincar com estes princípios, como o efeito do alho, ou dos crucifixos ou o facto da luz solar ser uma sentença de morte para a sua espécie. A vontade do argumento de Stephen Shields e Guy Busick é trilhar esse caminho tão familiar à dupla de realizadores, entre a comédia e o terror, mas acaba por não o conseguir assertivamente em nenhuma das frentes. Do lado cómico parece haver receio em ferir susceptibilidades, quando a história pede maiores riscos neste capítulo e por cometer o pecado capital de mostrar as melhores piadas no trailer, retirando o elemento surpresa da equação. O terror parece levar a melhor sobre o lado cómico, com o uso e abuso de sequências passíveis de nos revirar o estômago e por conseguir misturá-lo com sequências de acção de elevada intensidade e impacto. Pedia-se, no entanto, um pouco mais de variedade pois a primeira vez que vemos um corpo explodir num banho de sangue, após um intenso combate, ficamos impressionados, mas a sua constante repetição rapidamente se torna monótona.
A protagonista de nome Abigail, interpretada por Alisha Weir, é a mais interessante das personagens e ainda bem que assim é. Muito graças ao seu talento em equilibrar o lado macabro e inocente, e mesmo assim ter espaço para não a deixar cair numa vilã sem profundidade emocional e sem deixar de se divertir no processo. Como todos nós, só quer ser compreendida e amada, depois de encher a barriga com o sangue dos seus raptores. Melissa Barrera desde cedo se destaca, como personagem principal dos raptores, e a lenta revelação da sua história pessoal durante o filme permite-lhe construir a personagem mais complexa. Apesar do seu talento inegável, parece deslocada do ambiente do filme, com uma interpretação séria e emocional, enquanto o resto do elenco, apesar de reduzido na sua grande parte a clichês do género, procuram o lado cómico e o ridículo da situação. Mais uma vez, a indecisão de optar por um ou outro caminho na história, sério ou cómico, só aumenta o desequilíbrio da narrativa e o que pretende do espectador. A certa altura parece querer também explorar o tema da investigação criminal, complicando ainda mais o que deveria ser simples, mas felizmente acaba por deixar o assunto morrer.
Abigail refastela-se na avalanche do gore, e quando opta pelo caos e humor irreverente é particularmente bem-sucedido, mas a indecisão no que pretende do espectador, com demasiadas explicações e revelações, acaba por retirar a diversão da equação e com ela a nossa atenção. Felizmente há discernimento para, no final, nos presentear com um bailado de sangue e tripas, fechando o filme com chave de ouro.