O espectro da culpa; um sentimento de arrependimento que persegue uma pessoa como um espírito malévolo, disposto a enterrar um corpo num caixão de memórias dolorosas onde os protestos emocionais e as lágrimas são encarceradas em gritos vazios. Seja a recordação de um toque na mão, o som de um passo num chão de madeira, a paisagem despovoada de uma habitação isolada; a Culpa possui uma habilidade única de transformação física e emocional, moldando casas, quartos, camas, armários, pensamentos, percepções e até os próprios olhos de uma pessoa. É uma sensação solitária de remorso que acompanha-nos como uma sombra lívida, aguardando por liberdade. A Tale of Two Sisters é um conto sobre essa espera.
No entrar do século 21, o género do terror asiático mergulhava pelos ecrãs mundiais com os seus longos encharcados cabelos negros, uma aparência low budget que apenas salientava o seu valor tenebroso e um ambiente frio na sua composição cinemática. Em 2003, o subvalorizado realizador sul-coreano, Kim Jee-woon – responsável pela majestosa obra prima I Saw the Devil (2010) e pelo western irreverente The Good, The Bad, The Weird (2008) – irrompeu pelos jumpscares comuns do horror americano e pelos ruídos sinistros do terror asiático com uma narrativa profundamente arrepiante e surpreendentemente comovente sobre duas irmãs que regressam à sua casa de férias, após a morte da sua mãe.
Bae Soo-mi (Im Soo-jung), uma jovem rebelde, é acompanhada pela sua envergonhada irmã, Bae Soo-yeon (Moon Geun-young), e pelo seu emocionalmente distante pai, Bae Moo-hyeon (Kim Kap-su), numa viagem silenciosa até um espaço associado com tragédia. As palavras são inexistentes e a persistente quietude entrega uma sensação pacífica inicial que coloca a audiência confortavelmente no lugar do passageiro enquanto observamos a irmandade única e especial que estas duas jovens partilham. Os seus momentos, no primeiro ato, revelam uma beleza visual carinhosa, contrastando com a ligação nula que o pai fornece às duas filhas. A raiva desta débil conexão parental cresce com a imprevista presença da madrasta, Heo Eun-joo (Yum Jung-ah), a antiga enfermeira da falecida mãe destas irmãs.
Oposto às habitações familiares deste género, com casas que exclamam: “Um fantasma e diversas baratas moram aqui!” e o comum tom sépia, esta residência apresenta-se no exterior como um invejável espaço para repouso, e no interior como um local repleto de cores e diversas amplas divisões, exibindo uma imagem clássica; como se os ossos desta casa fossem criados por lembranças. Eventualmente, esse silêncio apaziguado produz um ambiente constante de desconforto neste lar, através da luxuosa direção de fotografia e um movimento lento de câmara que atrai atenção justamente para essa contradição no design de produção. É uma ilusão, onde a visão de um fantasma funciona como um haiku.
Kim Jee-woon é o responsável por este poema cinemático. O realizador demonstra um interesse particular em empregar significado dramático nas componentes triviais do género. Desde a manipulação de sons estridentes com uma edição impecável e metafórica, à sua extraordinária banda sonora, de violinos ominosos e valsas melancólicas, até à sua estrondosa e devastadora conclusão, com surpresas dramáticas inovadoras que arrancam por completo o coração do público. Kim compreende que o medo sobressai na compaixão e na tristeza. É esse instinto sentimental que destaca A Tale of Two Sisters, não só como um dos melhores filmes Sul-Coreanos de Terror, mas como um dos melhores filmes do género. O seu frame final é emblemático deste espírito criativo e artístico, possuindo uma das imagens mais potentes deste cinema.
Essa imagem é assistida pelo realizador e pela excelente equipa técnica, todavia, a sua transcendência ocorre principalmente através do rosto da protagonista. É o olhar de Im Soo-jung que transforma mágoa em desolação, que desidrata a audiência e que enfatiza o núcleo emocional. Se Kim Jee-woon é o motor, então a atriz, vencedora de diversos prémios pela sua performance – incluindo Melhor Atriz no Festival Fantasporto – é a verdadeira alma desta obra. O seu sorriso expressa distintas emoções enigmáticas; a sua angústia aterroriza o público com similar impacto à face de um fantasma. O horror da culpa; a alegria da página apagada. Tudo presente num único movimento e numa única feição.
A Tale of Two Sisters equilibra o horrendo com o poético numa fábula profundamente comovente sobre o pesadelo de viver com as nossas memórias, quando estas comprovam ser o nosso veneno. É uma história absolutamente extraordinária que captura a natureza de existir com um intenso arrependimento, comparando este à presença de um espírito. No fim, o silêncio para de oferecer a antiga serena quietude e a fantasia torna-se essencial para a paz emocional; tudo o que resta é o remorso personificado num eterno assombro.