A Sibila (2023)

de Pedro Ginja

“A Sibila, com a boca frenética proferindo coisas das quais não se deve rir, sem adornos e sem perfume, ainda chega aos mil anos com sua voz pela ajuda do Deus.”

– Heráclito

Sibila seria uma mulher capaz de adivinhar o futuro, o oráculo dos deuses. Era o que se dizia na antiga Grécia, onde o nome tem a sua origem. Não sei se foram estas histórias de outros tempos que inspiraram Agustina Bessa-Luís a escrever esta sua Magnum Opus, em 1954, mas são inevitáveis as comparações com a sua protagonista Joaquina Augusta, ou Quina (Maria João Pinho), como é muitas vezes tratada no romance. Este acompanha a sua vida, desde o berço, até à sua ascensão, ao lugar de maior poder na Casa da Vessada. Após restaurar o poder e influência da família, procura um digno sucessor de entre Germana (Joana Ribeiro), a sua sobrinha, e Custódio (Raimundo Cosme), o seu filho adoptivo. Quem ganhará a sua confiança e assim o poder da Casa da Vessada?

Colocar uma Sibila no interior português não é uma escolha inocente de Agustina Bessa-Luís. O que na antiga Grécia era considerada uma profetisa inspirada por uma divindade, em Portugal é chamada de “bruxa” e vista com desconfiança própria das lendas do interior do país. Era o machismo disfarçado de crença popular, por uma mulher não ser normalmente vista em lugares de poder. Eduardo Brito, nas escolhas do argumento, opta por mostrar Quina sempre como uma mulher poderosa, ciente do plano que tem para si e para a sua família. Uma mulher à frente do seu tempo é um alvo fácil da desconfiança da população. Curiosamente existe no livro de Agustina, e consequentemente no filme, uma inversão de supostos papéis impostos, entre homens e mulheres. Os homens surgem emocionais e menos considerados pela sociedade, enquanto as mulheres de Agustina surgem racionais e respeitadas enormemente, quase como divindades numa realidade alternativa. Há aqui uma clara glorificação da mulher num tempo (década de 50′) onde o seu papel era apenas o de mãe, e que é feito de modo tão subtil por Agustina, que passou largamente despercebido nessa sociedade machista, e lhe permitiu obter o reconhecimento que tanto merecia. Mesmo nos dias de hoje esta é, ainda, uma história de futuro à procura de um presente.

Para retratar estas mulheres temos duas inegáveis e talentosas actrizes do cinema português, com o destaque óbvio a cair sobre Maria João Pinho, no papel titular de Quina, a heroína da história, altiva mesmo na solidão a que se impõe. A sua contenção é particularmente impressionante nos momentos de conflito, geralmente por parte dos homens da sua vida, nunca cedendo à emoção mas emanando uma fúria inigualável. Mesmo caminhando, cabisbaixa, pelos campos parece uma “rainha” a caminho do seu castelo enquanto cumprimenta os seus “súbditos” inferiores e, nunca dignos, da sua devoção. A devoção dá-la a Germa, interpretada por Joana Ribeiro, a quem vê como uma igual. A sua presença, apesar de nem sempre visível, contamina o filme com uma fatalidade inevitável. Joana Ribeiro consegue ser ainda mais contida, mas com pequenas inflexões na voz demonstrado sentimentos diversos, desde o amor e respeito a Quina ao desprezo a Custódio, que destrói com um esgar de desaprovação cada vez que se cruzam. Tanto Joana Ribeiro como Maria João Pinho parecem do mesmo sangue e espírito, “sibilas” desde a nascença e destinadas à grandeza no cinema português.

Custódio, na pessoa de Raimundo Cosme, é o terceiro lado deste triângulo de interpretação de A Sibila. É irracional e propenso ao exagero dramático, como é imposto pelo argumento de Eduardo Brito e as palavras de Agustina. É difícil gostar deste Custódio, que na sua fraqueza auto-inflingida, involuntariamente, é um homem detestável. Tudo fruto da boa interpretação de Raimundo Cosme, ainda assim torna-se inevitável ser “engolido” pelas sibilas da história. 

Foram cinco as obras de Agustina Bessa-Luís que Manoel de Oliveira adaptou ao cinema. Desde que em 1981 iniciou este percurso com Fanny Owen (1979), chamando-o de Francisca (1981) e cuja “relação” terminou com a adaptação de Princípio da Incerteza II: A Alma do Ricos (2002) e que chamou de Espelho Mágico (2005). Pelo meio, um dos grandes filmes do mestre, Vale Abraão (1993), marcando o pináculo da colaboração entre o realizador e a escritora. Eduardo Brito é um claro discípulo do grande mestre Manoel Oliveira e atreve-se a adaptar, o que o mestre não tentou, revelando por isso uma coragem de louvar. Era inevitável esta comparação tanto pelo ritmo que impõe na narrativa, lento, e a precisão com que desenha os belíssimos quadros minimalistas de que o filme se compõe. Para a fotografia conspira com Mário Castanheira que parecem canalizar Edward Hopper na beleza com que retratam a solidão das suas personagens, mesmo quando partilham a tela em grande número. A isto não é alheio o excelente trabalho de Paula Szabo na direcção de arte e cenografia, com tudo a assentar que nem uma luva ao ritmo da obra original.

Na segunda tentativa de decifrar esse mistério que é A Sibila de Eduardo Brito, descobri inesperados prazeres escondidos, ao contrário da primeira tentativa, cuja sofreguidão e ritmo lento, imposto pelas palavras de Agustina Bessa-Luís, me embalou na indiferença. A Germa, de Joana Ribeiro, deixa-nos um porquê no final, que parece ecoar no silêncio sem resposta. E não será nessa indecifrável e incomensurável palavra que reside o seu fascínio? A resposta é um sim para este singelo e “bronco” homem.

4/5
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