A Semente do Mal (2023)

de Pedro Ginja

Esta é a segunda longa-metragem de Gabriel Abrantes, depois do surpreendente Diamantino (2018) galardoado com o grande prémio da semana da crítica no Festival de Cannes. A pressão para a sua superação era grande e a decisão segura seria enveredar por algo similar mas mais ambicioso. Opta por algo bem diferente e desta vez a solo, sem a companhia de Daniel Schmidt.

A escolha recaí no género de terror com A Semente do Mal. Edward (Carloto Cotta) vive uma vida feliz com a namorada, Ryley (Brigette Lundy-Paine) em Nova Iorque. Por ter sido adoptado em criança sente um enorme vazio na sua vida, apenas passível de ser preenchido se encontrasse a sua família biológica. Após inúmeras tentativas falhadas acaba por obter informações que o encaminham para o Norte de Portugal, um país totalmente desconhecido para si. Num palácio perdido no meio da floresta encontra o irmão gémeo e a mãe mas a prometida felicidade acaba por revelar um segredo terrível. Conseguirá Edward sobreviver a este pesadelo?

Gabriel Abrantes começa a ser sinónimo de total imprevisibilidade. Esperava-se algo arrojado, original e que explorasse a sua paixão por artes plásticas, mas o que obtemos é um filme de terror, aparentemente convencional, mas com uma identidade muita própria dos interesses do seu realizador. A Semente do Mal incorpora no argumento o tradicional terror português ligado às tradições e lendas do folclore popular, com o uso de referências dos mestres de terror internacional não só ligados ao cinema mas também à escrita e à pintura, fruto das suas experiências e vivências pessoais. Desde Freaks (1932) de Tod Browning a Rosemary’s Baby (1968) de Roman Polanski como possíveis influências, às histórias dos irmãos Grimm ou até um certo quadro de Peter Paul Reubens, pintor de estilo barroco onde a mitologia, alegoria e a sensualidade andavam de mãos dadas. As influências são claras e inúmeras, mas não é isso que define o cinema de Gabriel Abrantes.

Há que mencionar o seu fascínio com os avanços tecnológicos, sempre presente nas suas obras, e o comentário mordaz político/social que recai sobre as imposições da sociedade com a eterna juventude, aqui levada ao extremo, na personagem de Amélia, nos seus sacrifícios necessários para a manter. O humor, outra das imagens de marca de Gabriel Abrantes, é apurado, desconfortável, inconveniente e sempre com duplos significados revelando uma complexidade incomum no terror internacional, refém de convenções de uma seriedade auto-imposta. Tem havido excepções, principalmente fora de Hollywood, mas nunca com este teor de desconforto, que leva o espectador a relativizar ou a usar o riso como escape da tensão e das temáticas pesadas presentes no argumento. O toque do sobrenatural e de uma realidade alternativa é ligeiro mas não passa despercebido no desenrolar da história – soa a familiar mas parece distante do que se tem visto no terror e por isso é uma lufada de ar fresco no terror “made in Portugal”.

Mas nem só de Gabriel Abrantes vive o filme, pois no seu centro encontramos Carloto Cotta, aqui a interpretar Edward e o seu irmão gémeo português. A disponibilidade de ter duas “telas em branco” dá-lhe possibilidade de contrastar a inocência, resiliência e determinação de Edward, com a abertura, companheirismo e lealdade do seu irmão gémeo quando inicialmente se encontram. A progressão de ambas as personagens é gradual e bem construída culminando num terceiro acto explosivo de raiva e violência. No papel de Amélia, mãe das personagens de Carloto Cotta, temos uma irreconhecível Anabela Moreira, de longe a mais complexa das personagens, com um terrível segredo a definir todas as suas acções. A sua aparente fragilidade esconde uma mulher forte com o poder assente no seu instinto materno de protecção voraz, bem visível sempre que está em cena. Mesmo por detrás de uma maquilhagem pesada, consegue revestir a sua personagem dessa dualidade, de protectora a provocadora, com uma leveza assustadora fruto do inteligente uso do poder do seu olhar. Nos flashbacks surge Alba Baptista, como uma Amélia mais jovem, e também ela revela esse instinto materno avassalador e uma sensualidade arrebatadora nos breves momentos em que surge no ecrã. Referências ainda para Brigette Lundy-Paine, competente mas com menos oportunidades para construir uma personagem para além da sua função de companheira de Edward, e ainda uma participação breve de Rita Blanco. Referência óbvia para o trabalho de maquilhagem de Rita Anjos, incomum no cinema português e digno de ser mencionado, e os efeitos especiais de Irma Luci, parcos em quantidades mas impactantes no desenrolar da narrativa, como já tinham sido em Diamantino (2018).

O regresso inesperado de Gabriel Abrantes através do terror, revela um talento único para explorar novos caminhos e maneiras de fazer cinema. Um aparente filme convencional esconde a cadência e ritmo próprio de um realizador fã do absurdo e do desconforto, ancorado na comédia que é a condição humana. Já se viu algo parecido, mas nunca se viu nada igual por terras lusitanas.

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