A Noiva (2022)

de João Iria

Iraque, dias após a queda do Estado Islâmico. Assim arranca esta nova longa-metragem de Sérgio Tréfaut, com este pedaço de contexto numa única frase, abrindo espaço para uma viagem aterradora acerca do que sucede depois do fim, quando as crenças se tornam insignificantes perante a morte. Enquanto membros da organização Daesh são reunidos e executados, as suas esposas e filhos são questionados e aprisionados em campos, sob investigação, à espera do derradeiro julgamento. Dentro deste grupo, acompanhamos Bárbara (Joana Bernardo), uma adolescente europeia que adota o nome Umm neste país; atualmente grávida do seu terceiro filho e viúva da Jihad.

Inspirado em diversas histórias reais de jovens que fugiram de casa para se juntarem a guerrilheiros do Daesh, A Noiva navega pela sua narrativa com desinteresse nas temáticas políticas do extremismo e com uma curiosidade central nas encruzilhadas emocionais que estas personagens sofrem ao enfrentarem a outonada da sua batalha. Respostas são inexistentes e os motivos que transportaram este casal até ao Estado Islâmico permanecem um mistério durante o percurso do filme para o público. Inicialmente, Tréfaut elaborou um argumento que elucidava estes pontos dramáticos, contudo o realizador sentiu-se mais intrigado pela perspectiva de divisão entre dois mundos e no colapso das suas realidades, escolhendo, então, distanciar-se das típicas obras que procuram desvendar a origem da tragédia. Para Tréfaut, o ato de observar a tragédia no seu presente é suficiente.

Esta visão coloca Umm/Bárbara como uma naufraga na sua própria mente. A jovem retém, maioritariamente, os seus pensamentos e as suas palavras consigo, pressionando a audiência (destituída de chaves narrativas) a assistir com atenção as reações desta protagonista, cujos gritos de aflição são condenados à obstrução. Joana Bernardo recebe os holofotes de Tréfaut e brilha com uma excelente performance contida que ultrapassa a própria tela, associando o enquadramento a uma prisão corporal. A atriz detém o mundo desta personagem no seu olhar, contando inúmeras histórias misteriosas sentidas numa única expressão, e captura a audiência como refém no ínfimo universo dos seus olhos.

Firmado na viagem pessoal desta protagonista, com um ritmo vagaroso quebrado pelo constante som de crianças a chorar, e com longos planos estáticos e uma iluminação natural, Tréfaut cria um ambiente similar a um documentário contemplativo. Ocasionais momentos de paz são exibidos para contrabalançar os exaustivos frames desta jornada pela experiência burocrática, em condições desagradáveis. Rapazes brincam na destruição de um prédio, encontram entretenimento a atirar pneus para as chamas; mulheres unem-se a ouvir música. Nestes instantes empáticos, a atmosfera desta longa-metragem é permeada com uma sensação de incerteza que se prolonga para além dos créditos finais. Qual será o destino destas pessoas? Quanto de um ser permanece após uma lavagem cerebral? Conseguimos regressar a uma identidade anterior? E as restantes mulheres? É necessário apontar que a sua visão eurocêntrica deixa demasiado por dizer no seu silêncio, inevitavelmente desvalorizando as desigualdades entre a protagonista caucasiana com as mulheres árabes que acabam por se moldar com o cenário no background – esquecidas até no seu próprio país. Uma realidade que sobressai nas extremidades das imagens.

Tréfaut não está propositadamente a ignorar esta verdade exterior; simplesmente demonstra um interesse particular em compreender o fenómeno de jovens europeus a perseguirem ideais distantes dos seus mundos. A Noiva destaca-se de obras semelhantes, precisamente devido a esse foco fundamental; mantendo-se fiel e honesto à sua perspectiva arriscada. O retrato final apresenta as consequências destas personagens como o ato de derramar tinta, espalhando a sua escuridão por diversas famílias, países e ambientes, desesperados por impedir a permanência da tragédia; uma escolha que infeta o público com diversas dúvidas para que o impacto desta narrativa fictícia afete a nossa relação com a narrativa real.

3.5/5
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