Não é exagero constatar que Agatha Christie revolucionou a literatura nas décadas de 1920 e 1930. Além do título de escritora de ficção que vendeu mais livros na história (2 bilhões de cópias no total segundo o Guinness World Records), Christie recebeu a alcunha de “rainha do crime” por desenvolver um estilo narrativo que mergulha o leitor dentro de suas histórias, que misturavam técnicas de investigação elaboradas com situações e personagens realísticos. A bibliografia de Agatha influenciou profundamente as gerações futuras, não só na escrita mas em outros medias, como a televisão e o cinema.
Desde 2017, o cineasta irlandês Kenneth Branagh, em parceria com o argumentista Michael Green, está a adaptar algumas obras de Agatha Christie para o cinema através da perspectiva de um dos personagens mais famosos da autora: o detective Hercule Poirot. Branagh é o realizador, produtor e protagonista dos filmes; o que nos faz deduzir que estas produções terão escolhas criativas mais ousadas e interessantes, porém, as duas primeiras inclusões – Murder on the Orient Express (2017) e Death on the Nile (2022) – são deveras fracas relativamente à narrativa, e anémicas quando se trata de atuações.
A esperança que esta série de filmes pudesse render algo bom já estava a enfraquecer, até que A Haunting in Venice (2023) é lançado e consegue provar-nos o contrário. Embora esteja bem de longe de ser uma obra estupenda e revolucionária, a adaptação do livro Hallowe’en Party (1969) consegue apresentar uma história sombria e um mistério de facto envolvente para o espectador, revelando-se uma longa-metragem digna de um balde grande de pipocas e com entretenimento suficiente para nos esquecermos dos nossos problemas na sala de cinema.
A premissa é a seguinte: o famoso detective Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está decidido a deixar de lado os seus dias de investigação por acreditar que o mundo é um lugar simplório e descomplicado demais para novos mistérios. Um convite para uma festa de Halloween numa mansão assombrada em Veneza, muda completamente a sua perspectiva sobre a vida real, fazendo-o questionar sobre seus princípios céticos. O elenco é também composto por Tina Fey, Jamie Dorman, Kelly Reilly e a recém vencedora do Oscar, Michelle Yeoh.
O trabalho de Branagh na realização, Green no argumento e Haris Zambarloukos na cinematografia parecem, finalmente, entrar em sincronia, pois todas essas áreas amalgamam-se para construir uma história fluída e instigante. O conflito de Poirot em relação a ao seu ceticismo e o testemunho de eventos considerados paranormais é bem construído e deixa o público questionar-se sobre a autoria dos assassinatos que ocorrem ao longo da história. As escolhas de enquadramentos dos personagens é digna de apontamento, pois, em momentos de conflito ou reflexão, são sempre colocados no canto do ecrã e sempre com o foco no rosto e o corpo cortado. Creio que essa escolha seja para refletir o desconforto dos personagens, não só com aquela situação infeliz mas com o ambiente hostil da mansão.
As performances do elenco dividem opiniões. Embora estejam presentes artistas extremamente talentosos, alguns deles estão em piloto automático no que toca à sua performance. A sorte é que no caso de Tina Fey e Michelle Yeoh, mesmo que não se esforcem muito, conseguem entregar personagens carismáticos e complexos. Isso já não se aplica a Jamie Dorman, que não tem a fisicalidade necessária para construir um pai traumatizado pela Segunda Guerra Mundial. Os destaques positivos ficam para Kyle Allen, Camille Cottin e para o pequeno Jude Hill, que dois anos antes foi aclamado pelo filme Belfast (2021), também realizado por Branagh.
Há muitas qualidades em A Haunting in Venice. É um filme que se destaca por ser melhor do que os seus antecessores, porém, não chega perto de ser uma obra brilhante. E não há problema nenhum nisso. A produção tem elementos competentes e charmosos o suficiente para ser um entretenimento delicioso de final de semana, e sabemos muito bem que precisamos de obras assim de vez em quando.