FILME DE VINGANÇA
Uma receita clássica, fácil de seguir, indicada para adolescentes excitados e adultos cansados. 1h30. Porção para 1 Pessoa.
INGREDIENTES PARA UM FILME DE VINGANÇA
– 1 Mulher morta (Esposa ou Filha)
– 1 Ator de Meia Idade
– Flashbacks + Obsessão
– Uma única Lágrima
– Edição Epilética
– A Frase “Revenge won’t bring back your (Adicionar Pessoa)”
– JUSTIÇA!
– 300g de Farinha
PREPARAÇÃO
PASSO 1
Primeiro, contratar um ator de meia idade com reconhecimento dramático e popularidade suficiente para atrair audiência. Exemplos: Bruce Willis, Liam Neeson. Em caso de filha assassinada, incluir uma parceira atraente mais nova que não ofusque o protagonista. Deixar ela a chorar sozinha durante a história.
PASSO 2
Adicionar o ator a um argumento que recorre a vingança como pretexto para violência gratuita, inúmeras mortes e satisfação interna. Acrescentar um elemento dramático de marca branca como familiaridade entre o herói e vilão ou uma forma de traição que mantenha a ilusão de um enredo significativo. Após o desenvolvimento de uma história acessível para todos os pais do mundo, está na hora de misturar!
PASSO 3
Produzir a longa-metragem apressadamente para que o ator principal possa atravessar a rua e iniciar as filmagens do seu próximo projeto de vingança. Durante a pós-produção, elaborar uma edição epilética que esconda a idade frágil do protagonista. Inserir Flashbacks com o herói e a vítima às gargalhadas em slow motion. Incluir lens flare como especiaria. Yum, yum, delicioso. Está na hora de levar ao forno!
PASSO 4
Pré-cozer o forno a 200 graus com marketing barato. Adicionar um poster genérico com o rosto do ator e uma arma na sua mão, acompanhado por uma frase como “He’ll make them pay” ou “This time it’s personal”, para salientar o ato de vingança. Pling! Está pronto para distribuição! Possivelmente para um serviço de streaming com intenções de ser enterrado nas recomendações. Bon Appétit!
VINGANÇA NO CINEMA
“If it ain’t broke, don’t fix it”
Esta expressão americana condensa a inevitável exaustão de um género, despedaçado em migalhas, a ser reconstruído com saliva. A receita surge através de uma fonte de Tragédias Romanas e Gregas com um impacto cultural traduzido nas artes literárias, cinemáticas e até musicais – Os primeiros álbuns da Taylor Swift podem ser considerados atos de vendeta – que assevera o domínio desta emoção visceral. Vingança.
O consumo excessivo deste produto em formato fast-food durante décadas, esgotou imagens de vigilantes fora da lei e vilões com backstories dramáticos até atingir uma previsibilidade apática na presença de atos horrendos. No seu pior é uma técnica básica para argumentistas de fornecer motivação ao protagonista com objetivo de estabelecer simpatia superficial imediata perante uma plateia mundial, conquistando o espectador a apoiar o seu herói até o fim. Os maus estão mortos. Final Feliz. Créditos.
Numa componente replicada insistentemente devido à sua simplicidade, destacam-se realizadores com consciência do seu ambiente artístico e das suas implicações. São criadores que revitalizam o género na sua exploração de moralidade, ética e violência ao desenvolver componentes cinemáticas pertinentes com personalidade criativa e visuais sensacionais, expandindo a sua própria concepção dentro de uma variedade de géneros e permitindo uma construção narrativa distinta que provoca reflexão exterior e interior.
Cinicamente defrontamos esta temática constatando os seus clichês com uma conotação negativa, ignorando os artistas que beneficiam destas banalidades como vantagens para produzir diversas camadas dramáticas empolgantes, comprovando que o defeito não reside na sua existência mas em como é manuseado. A futilidade da vingança pertence a essa tesouraria de clichês. Na conclusão inevitavelmente trágica do seu protagonista persiste o perigo em associar a longa-metragem a um ato evidentemente desnecessário pois a frivolidade acompanha punição desde as suas origens teatrais e assim uma questão permanece. Como manter a história impermeável a este conceito?
Dentro dos diversos exemplos um país perfurou o género e desenvolveu algumas das melhores obras primas contemporâneas de vingança.
KOREAN NEW WAVE
Na Coreia do Sul, a luta pela liberdade persistia numa sociedade em transformação frenética que vivenciava as consequências da Ocupação Militar Americana e a Ocupação Japonesa. O povo revoltava-se contra a ditadura militar e o cinema combatia propaganda e censura na sua produção de enredos críticos das adversidades sociais e políticas. Nos anos 90, a democracia instalou-se e a indústria cinematográfica nacional expandiu, criando o Korean New Wave, que originou uma nova geração de cineastas como Bong Joon-ho, Park Chan-wook, Kim Jee-woon, entre outros, fascinados pelo taboo e ambicionados a desenvolver histórias livres de supressão.
Seria ignorante representar a arte de um país somente com sangue quando uma variedade de longas-metragens contradizem essa apreensão. Nesta fase em que derrubaram barreiras internacionais para as suas películas, as suas obras de vingança pronunciaram-se por um motivo. Comédia é árduo de traduzir enquanto raiva é uma linguagem mundial. Estes realizadores sobressaíram ao inserir temas políticos e sociais e ao categorizar as suas personagens como imperfeitas numa exploração da complexidade humana. Park Chan-wook entregou a brilhante trilogia de vingança, sendo OLDBOY – Velho Amigo (2003), a primeira narrativa Sul-Coreana a formar uma reputação online e atrair atenção para outras vozes criativas com uma ideia similar. A fantasia inicia o enredo.
I SAW THE DEVIL
“Beware that, when fighting monsters, you yourself do not become a monster… for when you gaze long into the abyss. The abyss gazes also into you.”
– Friedrich Nietzsche
Kim Jee-woon realiza uma das criações mais impetuosas dessa conceituação, I SAW THE DEVIL, sobre o nascimento de um monstro, Kim Soo-hyun (Lee Byung-hun), um Agente NIS que procura vingança contra o psicopata Jang Kyung-chul (Choi Min-sik), pelo assassinato da sua mulher grávida. Quando a perseguição atinge um desfecho súbito, insatisfeito com os resultados, Kim Soo-hyun liberta o serial killer para permanecer nesta condenação límbica. Um conto celebrado pela sua realização imaculada e essência grotesca e simultaneamente desvalorizado por esse próprio elemento. Um banho de sumo humano é suficiente para descartar os aspetos internos morais do seu argumento.
Retratado visualmente como um ambiente infernal de contrastes intensos nas cores e sequências, alternando entre cenas POV repletas de movimento e planos abertos e lentos que criam cumplicidade nos assassinatos e conectam a audiência com as vítimas e transgressores para sentirmos o sofrimento destas personagens e participarmos nesta retaliação com idêntico ardor e satisfação. Através deste método, o realizador confronta o espectador com a existência de Jang Kyung-chul e a sua crueldade sádica descontrolada, revelando uma realidade tenebrosa na sua presença que previne a inclinação em torture porn e permite uma vingança narcisista para o espectador que espera assistir semelhante agonia impingida a este psicopata.
O argumento analisa esta futilidade com Kim Soo-hyun recluso num ciclo vicioso de vingança, integrando a sua fantasia de revanche ao incorporar a sombra de Kyung-chul e emular os seus passos sem questionar a sua decisão de desencarcerar a sua presa, provocando a morte de inocentes para alimentar estes desejos. Esta construção realística de personagens favorece a atmosfera excessiva como uma metáfora sobre a natureza do sadismo fantasioso que personifica a citação de Nietzsche com um abismo que pisca o olho de volta. Uma representação visual simbólica de viver uma fantasia de vingança, onde é possível sobreviver a danos disformes e perder sangue suficiente para alimentar um buffet de mosquitos.
Este twist no segundo ato suscita o público a interrogar a sua participação nesta obsessão punitiva, questionando as moralidades da fantasia. Podemos classificar-nos como pessoas morais se fantasiamos semelhantes acontecimentos? I Saw the Devil desmembra os dois mundos em termos éticos, desenvolvendo uma distinção intricada comum em sujeitos que sofrem traumas e pensamentos intrusivos de vingança.
FANTASIA DE VINGANÇA
Men would rather go on a hunt for their pregnant wife’s killer than go to therapy
O desejo de vingança é um universal, cultural e biológico com raiz nos instintos animalescos dos seres humanos. Apresenta um medley de emoções que acompanha raiva com medo, insegurança e auto-aversão por vulnerabilidade. Ocorre desde infância como um mecanismo de defesa contra a sobrecarga de tristeza, impotência e desespero, tranquilizando sentimentos de frustração através de prazer malicioso e encerrando o capítulo com uma organização de identidade coerente.
Experiências de aflição injustiçada causam humilhação e despertam uma incontrolável fantasia intrusiva sintomática de retaliação. São pensamentos que surgem como processo de reequilibração de poder, ativando o aumento de fluxo sanguíneo no estriado dorsal e emitindo uma satisfação antecipada na penitência que permite a vítima recuperar o controlo sobre as suas circunstâncias e sobre si mesma. Contudo, esta sensação manifesta-se com culpabilidade e vergonha no confronto do ser com o seu desejo de justiça primitiva e a sua viabilidade, produzindo práticas de auto-destruição e resultando na sua desrealização e paralisia emocional.
Nestes eventos traumáticos, um dos recursos terapêuticos para resgatar uma sensação intáctil, aceitar a verdade e regressar aos valores anteriores é impedir que essas fantasias funcionem como um reflexo da pessoa. O individuo enfrenta a conformação de fantasia com realidade através da elaboração de perguntas e na construção de um cenário interativo esquematizado que transforma essa fantasia em realidade, promovendo a sua distância com lógica até o seu fim consequencial.
Dentro deste quadro persiste uma hipótese do sujeito prender-se na sua fantasia como uma salvação apressada provisória. Em I Saw the Devil, Soo-hyun reside neste espaço, transformando a sua realidade numa fantasia, impedido de regressar ao seu mundo com a percepção de fracasso de um segurança incapaz de proteger a sua própria mulher. A perseguição concede-lhe esse ciclo vicioso, além da existência.
REGRESSO À REALIDADE
O que é o cinema senão uma fantasia da realidade? Uma que providencia sonhos, pesadelos, reflexão e questiona a nossa identidade, crenças e existência. O desejo de retaliação permanece uma potência narrativa pois apela a experiências comuns. Consciente dos limites do género, o Korean New Wave quebrou as suas restrições e em I SAW THE DEVIL, Kim Jee-woon explorou a contradição emocional da natureza sombria humana onde a agressividade cresce e a restauração de estabilidade desaparece.
Violência punitiva é um impulso usual na nossa imaginação ilimitada e como não existe uma representação visual, esses pensamentos são desassociados da nossa identidade. Kim Jee-woon desenvolve uma exibição cénica dessa e mata, assim, o fetiche de vingança, expressando esse como uma necessidade dependente numa apresentação desconfortável e implacável que atravessa os limites da realidade e censura para encapsular o seu significado. Quando o protagonista atinge o fim do seu objetivo, ele chora pela sua esposa e pelo seu regresso. A sua vida espelha uma fantasia e ao abandonar esta tudo o que resta é uma realidade ainda mais trágica.
“Violence is the main movement of this film. I think the film tells strongly how much we are exposed to a violent life. Reality is more cruel and violent than film. The dark side of society is simply transferred onto film; film is just reality’s creative shadow.”
– Kim Jee-woon
1 comentário
[…] cinemáticos e aderir ao excesso da imaginação humana através das extraordinárias obras I Saw the Devil (2010), A Tale of Two Sisters (2003) e The Good, The Bad, The Weird (2008). A sua […]