“We’ll see.”
(Aviso: Spoilers sobre a série Bluey, e os filmes Inside Out (2015) e Onward (2020))
Bluey (2018 -) é uma série infantil criada por Joe Brumm com a intenção de fazer algo que fugisse daquilo que já havia no mercado de conteúdo infantil. Pretendia criar uma série que os pais gostassem de ver com os filhos mas que se dirigisse para um público-alvo mais novo. Normalmente as séries que os pais toleram ou se interessam mais de ver com os filhos costuma ser para um público-alvo mais velho. Aqui o foco de Brumm era quebrar alguns hábitos das séries infantis como o utilizar vozes adultas na dobragem de personagens crianças e em vez disso, recorrer às próprias crianças para tal; e produzir a série sem argumentistas que já tenham trabalhado na indústria. Daí a decisão de ser o próprio Brumm a escrever os guiões dos episódios.
A série relata a vida de uma família de cães e todas as descobertas e perguntas que as crianças fazem como também as dificuldades e desafios que advêm da parentalidade. Já conta com 3 temporadas, é de produção australiana (o que acaba por ser uma lufada de ar fresco dentro das produções americanas que estamos habituados a receber) e chegou à minha vida por influência das minhas sobrinhas mais velhas. Cada episódio deixa-me impressionada pelos temas em que toca e aprofunda. Os episódios são curtos, rondam sempre os 7 minutos. Esta escolha é propositada, dado que Brumm menciona ser o ideal para contar uma história, também devido à sua experiência nas curtas-metragens.
No entanto não deixa de impressionar a capacidade de criar narrativas que exploram emoções e traumas de uma forma acessível para crianças num espaço tão curto de tempo. Há episódios que ainda hoje me impressionam como o episódio Space, em que vemos um dos amigos de Bluey, Mackenzie, a explorar as emoções e memórias desconfortáveis ligados à sensação de abandono que parece manifestar durante uma brincadeira. É feita uma analogia entre uma brincadeira de astronautas que exploram o espaço e terem de enveredar por sítios desconhecidos, neste caso um buraco negro, como a viagem que também nós temos de fazer eventualmente às memórias menos agradáveis de modo a podermos sarar essas feridas e avançar. Mackenzie aprende e apercebe-se que tem de entrar nesse buraco negro (representado por um túnel) sozinho, mas que no fim os seus amigos vão dar o melhor por encontrá-lo e ajudá-lo a voltar em segurança. A componente visual desta cena em específico é bastante forte dado que recorrem a um flashback para ilustrar melhor a causa dessa atribulação interior da personagem e a presença de Calypso, a sua educadora de infância, como alguém que o assegura que está tudo bem em seguir em frente e que Mackenzie não tem de estar constantemente a voltar àquele momento.
De modo a dar um final estrondoso à terceira temporada, foi lançado um episódio especial de meia hora, com o nome de The Sign (ou O Sinal em português). Neste seguimos a esperança e a constante desilusão de Bluey que tenta a todo o custo evitar que a sua casa seja vendida, enquanto Bingo, a irmã mais nova, parece estar surpreendentemente bem com o facto dos cães com a franja nos olhos quererem comprar a sua casa. O core do episódio e da moral do mesmo está refletido na hora de leitura da escola de Bluey. A educadora, Calypso, lê uma história com um final feliz e Bluey questiona o porquê de todas as histórias terem um final feliz; porque é que não acabam com finais tristes? Ao que Calypso responde que provavelmente está relacionado com o facto de na vida já passarmos por demasiadas coisas tristes e que as histórias pretendem trazer-nos o contrário. No entanto. tenta dar uma nova perspectiva a Bluey contando a história de um lavrador que a cada acontecimento mau ou bom da sua vida respondia com “We’ll See” ou “Veremos”. A história termina em aberto e Bluey inicialmente não compreende a moral da história, mas este “veremos” acaba por se tornar num lema importante para o seguimento deste episódio.
No episódio anterior, os pais brincam com as filhas aos imobiliários. Eles fingem que estão a vender a casa de umas avozinhas por estas terem de ir para o lar. Claro que no fim deste episódio as avozinhas acabam por vencer e ficar com a casa na mesma. Têm a ajuda do agente imobiliário (representado pelo pai, Bandit) que imita um fantasma e assusta a suposta compradora da casa (representada pela mãe, Chili), ao que Bluey e Bingo ficam muito agradecidas. Mas Bandit lança um aviso: “Mas ouçam, não posso fazer sempre isto”, e enquanto esta frase é proferida o plano muda para a fachada da casa onde vemos uma placa a indicar que a casa da família Heeler, está realmente à venda. O timing do diálogo e do plano serve como uma pista e ao mesmo tempo um presságio daquilo que está para vir. Também demonstra uma das razões por eu ter ficado ligeiramente desiludida com o fim do episódio The Sign.
Bluey abre portas para uma vulnerabilidade das crianças e também dos pais que não é tão usual observar nestas séries, geralmente os pais são sempre uma figura mais autoritária que não participa muito nas brincadeiras das crianças. Aqui tanto observamos os pais a brincarem com as crianças (com e sem vontade), a tentativa de gerir o trabalho e vida pessoal com as dos filhos e o de perceber qual é a melhor forma de educar para formar seres humanos inteligentes e mais importante – empáticos. A série destaca-se no aspeto da empatia, dado que muitas vezes Bluey, com a família ou amigos, passa por algumas dificuldades e tenta encontrar formas de compreender e resolver a situação com e sem ajuda dos adultos. Estes desafios e problemas passam por coisas como: a Bluey sentir-se desadequada em casa por achar que a irmã mais nova é a preferida dos pais; Bingo, a sua irmã mais nova, ter dificuldade em perder; chegando até às próprias dificuldades da parentalidade de ajustar as brincadeiras para que possa ser ensinado algo mais profundo.
Isto visto por uma jovem adulta de 23 anos, é estranhamente terapêutico. As formas como os problemas são resolvidos entre pais e filhos e até mesmo entre amigos traz um pouco mais de esperança e tranquilidade para a minha criança interior. Questiono-me muito de como serão recebidos estes episódios por parte das crianças, já que muitas das vezes contêm ainda algumas analogias visuais um pouco complexas. Contudo, aquilo que muitas vezes nos esquecemos é que também nós enquanto crianças tínhamos sentimentos e pensamentos que considerávamos complexos, sem saber como os gerir. Esta série parece oferecer e demonstrar às crianças que é normal ter esses sentimentos e não compreender o porquê de ali estarem. Representarem essas dificuldades na televisão serve como um abraço empático que a sua audiência possa estar inconscientemente a precisar.
No entanto, é exatamente por esta razão que o fim do episódio especial The Sign, me intriga e desilude. O episódio roda em torno desta questão de sorte e de aceitar a imprevisibilidade da vida, aceitando os desafios que nos traz e as novas oportunidades que podem advir com eles. Contudo, assim que a família Heeler se prepara para tomar viagem, os cães com franja nos olhos decidem-se por outra casa e Bandit vê aquilo como uma espécie de sinal para não vender a sua casa. Tem o seu sentido, mas ao mesmo tempo parece contraproducente, dado que o episódio também explora o sentimento de luto e de injustiça quando temos de deixar pessoas e sítios que nos marcaram. O facto de haver esse final feliz que a Bluey esperava, não mantém a ambiguidade do episódio e pode confundir no tipo de ensinamento que é pretendido passar. Bandit e Chili debatem-se sobre o facto de estarem a tomar a decisão certa várias vezes, chegando à conclusão de não saberem se estão a tomar a decisão certa, mas que o que interessa é estarem a fazê-lo juntos. Ora, tudo apontava para que realmente a família tomasse esse grande passo e mostrasse aos espectadores que por vezes na vida temos de passar por estes eventos difíceis.
Na realidade, a decisão final acaba por ser um pau de dois bicos: tanto faz sentido Bandit recuar com a sua decisão por deixar de ter compradores para a casa e por já estar na dúvida em aceitar um trabalho noutra cidade, como ao mesmo tempo pode parecer um final irrealista ou sugar coated, por terem escolhido a decisão menos assustadora e mais confortável – algo que nem sempre podemos fazer na vida.
O que é que as crianças vão retirar disto? Para aquelas que já passaram e passam constantemente por esta realidade de mudar de casa, cidades e por vezes até mesmo de países, acredito que o episódio tanto possa ser reconfortante, porque trouxe-lhes aquilo que elas não tiveram, como ao mesmo tempo pode ser ligeiramente angustiante. De certa forma, estas personagens estão a ter uma oportunidade que elas nunca tiveram e puderam tomar uma decisão que na vida real não seria assim tão fácil de fazer. Nem sempre podemos deixar aquela oportunidade de trabalho para trás e sucumbir à nossa nostalgia. É verdade que a incerteza do desconhecido é assustadora, mas a cada decisão que se toma há sempre uma consequência que vem com ela. Aliás, vemos o exemplo de uma situação como esta representada num filme de animação da Pixar, Inside Out (2015). Os pais de Riley também mudam de cidade devido a uma melhor oportunidade de emprego, demonstrando como estas mudanças podem ter um grande impacto na vida dos filhos como também dos pais. Bandit e Chili estavam sempre a pensar no seu futuro e na qualidade de vida das suas filhas e família perante esta decisão de mudar de cidade, mas quando Bluey menciona que já têm qualidade de vida, que a vida delas já é boa o suficiente, os pais entreolham-se e nota-se esse sentimento de receio e dúvida de talvez estarem a tomar uma decisão demasiado ambiciosa e arriscada. Mas a vida é feita de incertezas, daí ter ficado ligeiramente desapontada quando o episódio acaba por ter esse twist final. Em Inside Out depois de todas as revelações e desilusões experienciadas por Riley, por estar sempre a comparar o seu passado com o presente, existe um momento de partilha muito vulnerável entre ela e os seus pais, onde cada elemento da família expressa os seus medos e inseguranças em relação à sua nova fase de vida, mas ao fazerem isso, dão força e coragem uns aos outros para avançar – porque sabem que têm o apoio uns dos outros. Riley deixa de se sentir sozinha naquela jornada e assume essa cidade, esse novo espaço, como a sua nova casa. É neste sentido de partilha de vulnerabilidade entre os elementos da família e a sua consequente compreensão que Bluey surpreende, mas que pareceu querer poupar um bocado as crianças com este final mais feliz. Não seria também melhor vermos a família de Bluey passar por essa grande mudança de casa e cidade e a sua adaptação a tudo?
A Pixar já tem o hábito de criar obras filmográficas onde o próprio fim é inesperado no sentido em que não segue a linearidade habitual do final feliz, escolhendo invés descobrir e mostrar-nos outro tipo de final feliz. Por exemplo, o filme Onward (2020) aborda a jornada de dois irmãos para conseguirem voltar a ver o falecido pai através de um feitiço mágico. Após uma busca atribulada, os dois irmãos só conseguem invocar o pai durante poucos minutos e aqui a Pixar troca-nos as voltas, e o irmão mais novo (Ian) sacrifica-se para que o seu irmão mais velho (Barley), possa ter a oportunidade de se despedir do pai, algo que o deixou cheio de remorsos durante esses anos todos. Claro que o ideal, e o esperado, seria os dois irmãos terem a oportunidade de rever e conhecer (no caso de Ian) o pai, mas o filme demonstra que nem sempre as coisas acontecem como desejamos e que nesse lado mais inesperado podemos encontrar novas e boas revelações: Barley precisava de se despedir do pai para fechar esse capítulo na sua vida, enquanto Ian percebe que na realidade nunca lhe faltou um pai, porque teve sempre o seu irmão a protegê-lo e a acompanhá-lo; a ser uma figura paternal na sua vida.
Aliás, claramente a Pixar não é a única a desafiar esta forma convencional e segura de concluir os seus filmes. O Estúdio Laika, o Cartoon Saloon, e o Estúdio Ghibli são outras produtoras que procuram desafiar as crianças (e talvez entrar mais dentro da sua mente), sem deixar de as tratar como seres humanos com sentimentos e emoções intensas que precisam de ser representadas no grande ecrã. Chris Butler, um dos membros do estúdio Laika e realizador de ParaNorman (2012), comentou recentemente num artigo da revista de cinema Sight and Sound, que detestava a ideia dos filmes de animação como dispositivos de babysitting, ou seja, como conteúdo seguro para entreter crianças horas a fio sem problema. O seu objetivo é tratar as crianças como seres pensantes. O cineasta chega até a recordar na sua própria infância os seus gostos recaírem maioritariamente em obras que o desafiavam e intrigavam. Claro que vai depender da idade e maturidade da criança, daí este tipo de filmes e séries ser aconselhado a ser visionado com o acompanhamento dos pais, para que estes possam explicar os elementos menos claros para os mais pequenos. Mas é verdade que a indústria quando cria conteúdo direcionado para crianças, costuma limar demasiado as coisas e tornar os filmes muito simplistas ou clichês na moral que pretendem passar.
Lembro-me de na minha infância correr pelas escadas acima porque tinha a sensação e medo de que um vampiro ou um monstro me apanhasse. Curiosamente, os filmes de Tim Burton e de animação mais assustadores, chamavam-me sempre a atenção: talvez porque desconstruíam esse meu medo, ou talvez porque eu, ao visionar esses medos expressos no ecrã, ganhava uma nova coragem. Acredito que ao criar uma narrativa direcionada para crianças, o objetivo não deveria ser esconder ou tornar os vilões mais simpáticos mas de lhes dar maior visibilidade, de modo a criar diálogo, criar intriga, a provocar o pensamento e a validar a existência das coisas boas, más e incertas da vida que, tal como Mackenzie no episódio de Bluey, podemos ter de passar sozinhos, mas vamos ter sempre uma rede segura para nos apanhar, sejam os pais ou os amigos.
Compreendo que nesta série, The Sign possa ser um presságio para a sua nova temporada, para os jovens espectadores se prepararem. A realidade é que a diferença entre uma série de televisão e de longas-metragens isoladas, como o caso dos exemplos levantados neste texto, é que existe mais tempo e uma oportunidade única para o realizador passar a mensagem que pretende. No entanto, neste episódio final desta temporada de Bluey, a decisão de Bandit é confirmada por uma prolepse, onde vemos uma Bluey crescida a visitar os seus pais, agora mais velhos, na sua casa de infância.
Não sei que rumo a próxima temporada de Bluey vai tomar: se vai seguir uma Bluey e Bingo mais crescidas (até porque, ao usar vozes de crianças reais para a dobragem das personagens, em vez de adultos, exige a que se tenha de acompanhar o seu crescimento na série), se a série vai passar a focar-se mais nos amigos de Bluey e Bingo, ou se vai manter-se dentro do mesmo registo, na mesma cidade e casa. Observando isto de um ponto de vista da produção, talvez para o criador fizesse mais sentido e fosse mais prático a história continuar no mesmo sítio do que começar num lugar completamente novo quando o objetivo não é manter a série por muito mais tempo. Mas lá está, são especulações de uma cinéfila e da sua criança interior que podem estar erradas, dado que está confirmada uma nova temporada. Contudo, não consigo deixar de ficar desiludida por um episódio que poderia ter uma carga emocional ainda maior se tivesse uma abordagem à la Pixar e mostrasse que por vezes temos de ir em rumo para o desconhecido.