20.000 Especies de Abejas (2023)

de Pedro Ginja

A infinitude de leituras que cada espectador pode tirar deste filme é o seu maior tesouro. A única coisa que pede é abertura de mente para entrar num mundo que porventura poderá ser desconhecido ou rodeado de muitos equívocos e ideias erradas. É urgente, acima de tudo, a educação e a disseminação destas histórias para que a polémica se transforme no que deve ser, parte da normalidade de uma sociedade evoluída.

Durante as férias de verão, Ana (Patricia López Arnaiz) e os seus 3 filhos viajam até à casa de sua mãe, Lita (Itziar Lazkano), no interior do País Basco, onde habita com a irmã, Lourdes (Ane Gabarain), que trabalha na criação de abelhas e na produção de mel. Um dos filhos, de nome Aitor (Sofía Otero), não encaixa nas expectativas da família e vive em constante dúvida sobre a sua identidade, o seu lugar na família e no mundo. 20.000 especies de abejas é a sua história e também é a segunda longa-metragem de Estibaliz Urresola Solaguren, estreada na secção de competição da 73ª Edição do Festival Internacional de Berlim.

Entramos nesta história em ambiente de tensão. Ana e Gorka (Martxelo Rubio), os pais, discutem minutos antes de partirem separados, para destinos diferentes, durante as férias de verão. Logo se estabelece, no entanto, que é na mente de Aitor que decorre a maior batalha: a da busca da sua identidade de género em toda a sua complexidade. Isto traduz-se na busca de um nome que possa chamar como seu, para além dos trâmites legais e regras da sociedade. Nunca a realizadora procura impor qualquer ponto de vista ou apressar uma decisão ou agenda pessoal. Tudo se processa de modo orgânico usando a própria natureza como metáfora da metamorfose, não da personagem de Sofía Otero, mas da família que naturalmente “evoluí” e, acima de tudo, confronta a verdade. É em Ana, interpretada por Patricia López Arnaiz, que essa evolução mais se sente. Apesar de ser a que se considera mais progressista e aberta à diferença não consegue ouvir os gritos de ajuda de Aitor.

Outro ponto bonito do argumento é o de colocar pontos de vista antagónicos sem julgamentos prévios de valor como o lado conservador/religioso da avó Lita ou o lado progressista/natural de Lourdes. Surgem em constante conflito, durante o filme, mas progressivamente se unem dando às abelhas o papel de uma divindade que tudo aceita, une e cura, sem julgamento. A própria iconografia religiosa é um elemento central da história, não como “bode expiatório” mas como metáfora do baptismo, no renascer para uma nova vida e, principalmente ao invocar Santa Lúcia. Conhecida como padroeira dos cegos e portadora da luz, para a Igreja, a sua imagem adquire no argumento a graça iluminadora que Dante apregoava na Divina Comédia. Algo que as religiões e a própria sociedade têm muitas vezes esquecido ou evitado confrontar/dialogar e que reveste esta história de uma importância, para além da arte, na sua educação.

Visualmente estamos em território naturalista no uso da luz ambiente, e em território impressionista na maneira como nos retrata a natureza, nos seus reflexos, no seu verde luxuriante e no poder transformador da água, elemento aglutinador do argumento. Há uma preponderância de planos aproximados dos protagonistas levando-nos a colocarmo-nos na sua “pele” e tornando as suas angústias nossas. Todas estas características são reminiscentes do estilo de Carla Simón, que nos trouxe Alcarrás (2022), o ano passado, e com o qual partilha o mesmo ADN.

Todos estes elementos referidos são inspiradores e bonitos mas esta história só poderia resultar com alguém capaz de transmitir a infinidade de emoções, o conflito interno constante e a ambiguidade de género da sua protagonista. E esse milagre está em Sofía Otero que nos conquista tanto naquela briga de irmãos, no início, até ao sorriso luminoso com que brinda a audiência ao acordar, mesmo no final, num lindo dia de verão. Uma justíssima vencedora do Urso de Prata para melhor interpretação, no Berlinale de 2023, com apenas 9 anos.

Serviço público sobre identidade de género é o que Estibaliz Urresola Solaguren nos brinda com este 20.000 especies de abejas. O seu maior triunfo, nos dias que correm, é de consegui-lo, não através da polémica ou oportunismo fácil, mas através do poder transformativo do diálogo na erradicação de muros e ideias pré-concebidas. Isso e um “milagre” chamado Sofía Otero, numa interpretação plena de instinto e empatia.

4/5
0 comentário
3

Related News

Deixa Um Comentário